Aniversário de AVC

Todo esse pensamento mórbido reflete minhas angústias quando a folhinha do calendário vira para o mês de maio

Todo mundo que nasce, tem uma data de aniversário. Todo mundo que sobrevive a uma tragédia, também. Mas nem todos gostam de se recordar disso. Para nós, AVCistas, esta data nunca é passada em branco: é o aniversário de AVC.

Maio finalmente chegou, e isso fez com que os meus pensamentos retornassem ao passado. Foi neste mês que, em 2019, tive os meus AVCs. Confesso que é quase viciante relembrar os dias que antecederam a fatídica terça-feira em que quase me despedi da vida, e nas minhas opacas memórias, sempre procuro algum sinal ou explicação do que estava acontecendo no meu cérebro. Como eu imaginaria o que estava por vir? Será que, de algum modo, eu poderia evitar?

Acho que todo sobrevivente tem esses feedbacks no retorno da data de seu aniversário de AVC, que é como chamamos este dia nos nossos grupos de apoio. Na verdade, acho que todo mundo que vivenciou uma tragédia se sente um pouco assim quando chega perto da tal data em outro ano. Tenho a sensação de que vivo uma realidade paralela, já que na minha vida anterior eu morri neste dia. Em minha imaginação, chego até a visualizar o meu túmulo: com nome, data de nascimento e morte.

Todo esse pensamento mórbido reflete minhas angústias quando a folhinha do calendário vira para o mês de maio: um mês que se tornou muito triste para mim. Nele, volto a passar pelos AVCs que viraram a minha vida de cabeça para baixo. É como se fosse um filme de terror, em que revivo todos aqueles momentos: o frio, o cansaço, aquele terrível estalo na altura da nuca e a dor de cabeça sem fim. Depois vem os dias de UTIs, as duas cirurgias e aquela sensação de fraqueza e impotência que se perpetuou até o fim do ano. Maio sempre será um mês tenso.

No mundo do AVC, além de reviver esses momentos, ousamos comemorar esta data, que obviamente é diferente para cada um de nós. A ideia não é comemorar o acidente vascular cerebral em si (já que ele não tem nada de festivo), mas o nascimento de uma nova vida após ele. Não é fácil celebrar este dia, porque esse processo exige muitas ressignificações. Para dizer a verdade, saímos tão machucados dessa experiência, que leva um tempo para sentir que a gente sobreviveu.

Nos primeiros meses, apenas sentimos frustrações, revoltas e agonias. Lembramos todo instante da vida que tínhamos e não temos mais, ou, citando Manuel Bandeira: “da vida que poderia ter sido e não foi”. Este luto de si mesmo pode durar meses e anos, depende de cada um, por isso ninguém é incentivado a comemorar essa data. Cada um vai aderindo a ela aos poucos, de acordo com a intensidade de sua aceitação do acidente.

Na primeira vez que soube desta possibilidade, achei até uma afronta ao meu sofrimento. Todavia, se você pensar bem, todo AVCista já é afrontoso por ainda estar vivo, e isso nos permite ressignificar tudo, até mesmo este termo. Afinal, se seguíssemos o fluxo severo da medicina, era para estarmos em um outro lugar (com seres celestiais, ou não), porém o corpo e a mente teimaram tanto em viver, que acabamos permanecendo neste mundinho capacitista que nos assombra. Andamos de mãos dadas com a dor e a alegria ao mesmo tempo. É preciso ter muita coragem para isso!

Não sei bem a razão que cada sobrevivente tem para comemorar o seu aniversário de AVC, porém, eu decidi fazer isso porque não quero que os meus acidentes parem a minha vida. Nunca irei esquecê-los porque eles mudaram meu corpo e a minha alma para sempre, porém, foram justamente eles que me “acordaram” para uma nova vida e me mostraram quantas coisas eu ainda quero fazer: viajar, conhecer novos amigos e desenvolver projetos (confesso que sou meio viciada em projetos, afinal, ninguém é perfeito).

Existem tantas coisas que ainda quero fazer, que acho que foram elas que me fortificaram para sobreviver àquelas cirurgias cerebrais e aqueles terríveis dias que vieram depois. Acredito que todo sobrevivente tenha um certo propósito para ainda estar vivo, algo que só ele possa descobrir. E deve ser isso que comemoramos com bolo e bexigas no dia que era para termos morrido: a busca (ou o encontro) de alguma razão ou propósito. Pois é, todo sobrevivente de AVC tem um quê de filósofo. Talvez até não saibamos como nos expressar a respeito da vida e do mundo devido a alguma sequela, mas com certeza sentimos tudo e todos de maneira diversa, de outra perspectiva.

E assim, olhamos o calendário, circulamos a data, fazemos longos passeios físicos ou mentais, e suspiramos. Escolhemos um bolo, avisamos as pessoas próximas e decidimos sair da dieta. No tal dia, acordamos estranhos, e quando o relógio bate aquele determinado horário, sentimos nossos olhos lacrimejarem, porque dói fazer aniversário de AVC. Ele representa o nosso renascimento, e todo renascer é doloroso. Entretanto, todo sobrevivente tem uma boa dose de teimosia em sua natureza. Se estamos aqui, é porque batemos o pé. E é com essa mistura de sensações que sopramos a velinha com idade infantil e cortamos o bolo. Estamos vivos, e sabemos o valor disso.

Ao todo, tive três AVCs em maio de 2019: no dia 10, o transitório; no dia 14, o hemorrágico e no dia 23, o isquêmico. Morri e voltei duas vezes, mas comemoro o meu aniversário de renascimento no dia 14, que é quando eu caí no chão num salto para a morte. Tempo depois, cheguei inconsciente ao hospital, onde me colocaram na tomografia e me intubaram, porque eu já não respirava mais sozinha. Numa série de decisões corajosas, rasparam a minha cabeça, cortaram o meu crânio e estancaram todo aquele sangue, sem nenhuma certeza se eu sobreviveria ou não.

Naquela madrugada do dia 14 de maio eu morri e renasci horas depois para uma outra vida, que no meu modo de ver é diferente. Nela escrevo, sinto e vivo muito: um ótimo jeito de viver de novo, acho. Neste diaaceitarei abraços, desejos de felicidade e carinhos, mas saibam: vou chorar um pouquinho. Todo mundo chora e sorri em seu aniversário de AVC, faz parte do nosso protocolo. Somos assim mesmo: afrontosos.

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