Ainda é cedo

Quando abri os olhos na UTI e me disseram que eu tive um AVC, jurei que fosse mentira. Na minha cabeça, até então, só pessoas idosas tinham derrames cerebrais

Uma a cada quatro pessoas terá um AVC ao longo da vida, independentemente da idade. Esta é a estimativa dos dados oficiais. E dos últimos anos para cá, o número de vítimas jovens vem aumentando drasticamente. Parece que estamos vivendo uma epidemia de derrames, por quê?

Quando abri os olhos na UTI e me disseram que eu tive um AVC, jurei que fosse mentira. Na minha cabeça, até então, só pessoas idosas tinham derrames cerebrais. Pelo menos foi assim que o AVE (Acidente Vascular Encefálico) apareceu na minha família (só depois dos setenta anos). Todavia, durante a recuperação, fui encontrando cada vez mais sobreviventes na minha faixa etária e constatei que não fui a exceção. Mas por que isso está acontecendo?

Antes de tentar expor minha opinião, deixo claro que não sou médica, nem trabalho com pesquisa e estatística. Sou apenas uma pessoa que teve dois AVCs relativamente cedo (aos 34 anos), e que ouvindo outras pessoas que passaram pela mesma situação, busca a resposta para esta pergunta. Acho que, de algum modo, todos nós sobreviventes nos perguntamos.

“Estava no auge da minha carreira”. Esta foi a primeira fase que ouvi de meus colegas, e depois ouvi outras semelhantes como: “Meta! Meta! Meta!”, “Foi bem na época em que fui promovido!”, e assim por diante. Oras bolas, será o trabalho que está nos matando? Não exatamente, mas o estresse é confirmadamente um dos motivos de AVC. A gente não percebe, mas corre atrás do tempo, do ônibus e do salário o dia todo, come mal, dorme mal, prejudicando cada vez mais o nosso sistema circulatório, que ninguém vê que está prestes a explodir.

“Vivia num relacionamento abusivo.” Muitos dos jovens AVCistas, a maioria mulheres, relata que vivia em um relacionamento conturbado com o companheiro(a). Relacionamentos tóxicos aumentam drasticamente o nível de estresse, principalmente porque grande parte dos abusos acontecem em casa, local onde, na teoria, devíamos relaxar. Nós, seres humanos, evoluímos muito na área tecnológica, porém não muito na arte de nos relacionarmos. Não sabemos limites, não impomos respeito, e muitos acabam por transformar a casa em um campo de batalha. O coração não aguenta, enfarta! O cérebro não suporta, derrama-se.

“Foi a pílula anticoncepcional.” Outra campeã de prováveis causas é a famosa pílula, bombardeada de hormônios, cujo um dos efeitos colaterais é a possibilidade de aumentar as chances de a paciente desenvolver coágulos no sangue, um dos principais motivos do AVC isquêmico. Eu mesma comecei a tomar pílula aos dezessete anos, frequentei várias ginecologistas e nenhuma delas perguntou do meu histórico familiar antes de receitar um contraceptivo. Nunca deveria ter tomado nenhum, já que, na minha família (tanto por parte e mãe como por parte de pai), existem vários casos de isquemias. Nos consultórios, sempre nos é perguntado o histórico familiar em relação ao câncer, mas raramente em relação ao AVC. E é justamente de AVC que a minha geração está morrendo.

“Passei mal alguns dias antes, fui para o hospital e me mandaram embora.” Toda vez que ouço essa frase, chego a ficar azul de raiva. Muitos derrames avisam que vão acontecer poucos dias antes do verdadeiro entrar em cena. É o mesmo processo do famoso falso alarme de parto (contrações de Braxton Hicks). A pessoa tem todos os sintomas de AVC (boca torta, perda da mobilidade de metade do corpo, dificuldade para falar e compreender e forte pressão na cabeça), pede ajuda e vai para o hospital, lá recebe um analgésico que camufla os sintomas do AVC transitório, melhora e é liberado para casa. Dois ou três dias depois vem o “verdadeiro” AVC que mata ou deixa sequelas. Quando alguém tem esses sintomas, o ideal é que fique em observação hospitalar, para ser socorrido a tempo, caso sofra um derrame.

Também há aqueles casos em que as pessoas não sabiam que tinham alguma anormalidade cerebral, como a MAV (Malformação Arteriovenosa Cerebral) e o aneurisma. Em muitos casos, essas doenças não demonstram sintomas, a não ser quando rompem uma artéria. Sim, é uma realidade assustadora, mas é a verdade. Também tem casos de pessoas que não têm ideia da causa do seu AVC. Sim, esse fato é ainda mais assustador, e também é verdade.

Hoje percebo que era muito propensa a ter um AVE. Fumava, bebia, trabalhava muito, tinha recém-saído de um relacionamento abusivo, estava com um enorme aneurisma na cabeça (sem saber) e havia tido um AVC transitório (diagnosticado como provável meningite no hospital) quatro dias antes do aneurisma estourar. Porém, não sabia que corria todo esse risco, porque na época acreditava que AVC só acontecia com idosos, e não tinha a dimensão que minha vida se enquadrava em boa parte dos fatores aqui mencionados. Resumindo: eu não tinha lido este texto.

Passar por um AVC muito jovem é cruel, porque bem quando queremos ser mais independentes, regredimos à total dependência com a paralisia. Ademais, o AVC também é um trauma emocional. Quem nos olha de fora não tem noção de como estamos machucados por dentro. Ficamos com uma cicatriz na alma.

Além da importância de prevenir o AVC, é essencial implantarmos políticas de reabilitação física e psicológica aos sobreviventes, para que estes tenham oportunidades de reingressar no mercado de trabalho e terem autonomia social. É imprescindível que o AVCista acredite que possa ser independente, ter relacionamentos amorosos dignos, constituir família, viajar e ser realizado em sua profissão. Porque ter sonhos (e correr atrás deles) faz parte da vida. E todos que estão vivos, merecem tê-los.

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