Água e sal

Conviver com um sobrevivente de AVC não é fácil, mas não precisa ser penoso. Aliás, se estiver sendo desagradável, é péssimo para os dois: paciente e cuidador

É impossível definir o quanto um acidente vascular cerebral pode ser devastador na vida das pessoas. Só quem vivencia ou acompanha um tem ideia. É como se o AVC fosse uma enorme onda que destrói tudo em sua volta. Ele não afeta apenas o sobrevivente, mas todas as pessoas que o amam.

Desde que comecei a escrever sobre a minha experiência com o AVE (sigla sinônima de AVC, sendo que nela apenas trocamos a palavra “cerebral” por “encefálico”) nas redes sociais, recebo a visita de um público muito especial: os familiares de pessoas que tiveram derrames. Muitos deles, com o ente querido ainda na UTI, me relatam a dor e a dúvida desse momento tão difícil. O AVC nos pega de surpresa, ninguém está preparado. Ele chega sem hora marcada e deixa milhares de pendências: a conta não paga, o almoço não finalizado, a discussão não resolvida. Tudo fica pela metade, assim como o nosso corpo. Assim como a nossa mente.

É difícil saber quem vai sobreviver a um AVE; ele é uma “roleta russa neural”.  A gente não sabe nem se irá sobreviver, muito menos com quais sequelas irá ficar. Ninguém sabe disso, nem os médicos, nem o padre, nem outros sobreviventes: ninguém. No tempo em que estamos internados, enquanto nossos amigos e familiares estão torcendo pela nossa sobrevivência, nos encontramos confusos com o nosso cérebro machucado. Até o coma é confuso: é um sono tenso, diferente, cheio de sonhos que não são sonhos, com muitas vozes e cheiros. Depois dessa minha experiência, sempre falo para as pessoas próximas conversarem com quem está em coma, porque a gente sente tudo com tanta força que o amor se torna tangível, ao ponto de sermos capazes de o tocarmos com as pontas dos dedos. É como quando a gente está embaixo da água do mar: é tudo muito denso e calmo, porém, do outro lado tem outras sensações, e as pessoas que amamos, são elas que nos convencem a sair da água. Conversar com quem está em coma é chamá-lo para fora do oceano.

Quando sobrevivemos ao AVC o mundo fica em festa, e a impressão que dá é que o pesadelo terminou e que tudo ficará bem. Só que na volta para casa, o final feliz vira pesadelo. Uma nova onda se forma e se quebra bem na nossa cabeça dolorida: damo-nos conta das nossas sequelas. Percebemos que atividades simples como cozinhar e varrer o chão se tornam missões impossíveis. A inércia do corpo paralisado toma conta, e delegamos para que a pessoa mais próxima adivinhe (já que não podemos falar) e atenda os nossos desejos (já que não temos a autonomia de realizá-los por nós mesmos). Quem recebe essas árduas tarefas é o nosso cuidador.

Apesar de existirem profissionais altamente capacitados na arte de cuidar, na maioria das vezes quem se torna cuidador de um sobrevivente é um membro da família, muito bem-intencionado e sem nenhum preparo para uma função tão complicada e nada valorizada. Afinal, cuidar de um adulto não é como cuidar de uma criança. Adulto tem seu querer, precisa ter suas necessidades atendidas, não tem como educá-lo. Sem contar que quem sofre um AVC não tem o mesmo humor, a mesma resiliência de antes. Não, não, quem controla tudo isso é o cérebro, que está machucado. Então temos rompantes de raiva, crises de choro e angústias sem fim. E quem vê e ouve tudo isso? Sim, ele mesmo: o cuidador.

Além disso, o heroi cuidador enfrenta um dilema: até que ponto ajudar? Os médicos e terapeutas dizem que é para deixar o paciente fazer tudo sozinho, porém, fazer isso no dia a dia é difícil. É complicado obedecer aos especialistas e não fazer as coisas para o pai, a irmã ou o avô que teve derrame. Se é difícil dizer “não” para um filho, imagina quando a situação se inverte? O coração aperta. Coitado do cuidador, quem é que cuida dele?

Depois de um derrame, todas as nossas relações mudam. Aquela troca de palavras e de afeto se desvai por uma fase indeterminada, porque todo o nosso tempo e energia são dedicados a nos recuperar e a nos adaptar à nossa nova vida. E não fazemos isso por egoísmo, é como se estivéssemos surfando no tubo de uma grande onda. Qualquer desvio de atenção pode nos derrubar e nos afogar no oceano das nossas lesões cerebrais. 

Nos primeiros meses após lesão, enquanto eu era vista como ultrassensível e egoísta por quem eu mais amava, via todo mundo que cuidava de mim como negligente e “sem noção”. Mas a realidade era bem diferente dessas duas visões. Foi um acidente muito grave, e os dois lados estavam ansiosos para que o mar se acalmasse e eu me recuperasse por completo. Só que não é assim que acontece. Para quem sofre um AVC, o mar nunca se torna calmo, é a gente que aprende a nadar na tempestade.

Conviver com um sobrevivente de AVC não é fácil, mas não precisa ser penoso. Aliás, se estiver sendo desagradável, é péssimo para os dois: paciente e cuidador. Hoje em dia, aconselho os cuidadores de primeira viagem a procurarem pessoas e serviços experientes no assunto para aprenderem tanto as técnicas de cuidar, como a lidar com a sensação de estar cuidando errado de quem se ama. Compreender as lesões e as sequelas do derrame da pessoa amada também é importante, porque o AVC não é apenas de quem teve, mas de quem convive com as consequências dele. Todos estão juntos nessa imensidão de água e sal, e ambos podem sobreviver a ela. A mesma água salgada que arde, cura.

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