Afasia

O AVC do meu avô me preparou para o meu. Quando acordei da cirurgia, soube o que tinha acontecido

A dele foi em julho de 2003. Era noite e eu estava estudando na casa de uma amiga. O meu celular tocou e era a minha mãe. O vô estava estranho, estava conversando e de repente não conseguia mais falar coisa com coisa.  Instintivamente eu soube que era sério. Falei para minha mãe que íamos correndo para o hospital. Resolvemos que eu acompanharia o meu avô, pois era muito apegada a ele e eu sabia lidar com ambientes hospitalares.

No hospital ficamos horas na fila de triagem do pronto-socorro até ele ser atendido. Nesse meio tempo ele me perguntou quem eu era “Sou a Camila, vô”. Ele riu e disse que a Camila era pequenininha ainda, e que eu era uma moça, não poderia ser a Camila. Nessa conversa, eu senti que o negócio era mais complicado do que eu imaginara.

Fui com ele no atendimento e vi que ao ser examinado, pediram para que ele apertasse a mão do médico com a mão direita e com a mão esquerda e fizeram um teste de equilíbrio. O vô não passou nos testes e estava muito confuso. Eles disseram que iriam interná-lo para fazer exames, mas que provavelmente era um AVC isquêmico. Liguei para a minha mãe e a avisei antes de assinar a internação do vô.

Como eu me recusei a ir embora, passei a noite segurando a sua mão esquerda, a sua “mão boa” apoiada num banquinho ao lado de sua maca. Eu estava com dezoito anos, ele com setenta e poucos.  Acordei com a copeira trazendo o café. A dor nas costas era insuportável, nunca tinha dormido sentada até então. O vô queria café, mas não queria comer. Ele não falava, mas mexia muito a língua. Tentei falar com ele e ele grunhiu algumas palavras e apertou a minha mão forte. Ele jogou o pão com manteiga em mim e entendi que era para eu comer. Como estava com fome, aceitei de primeira, independente de ele estar nervoso ou não.

Um médico chegou e me disse que iriam transferi-lo para outro hospital de uma cidade da região metropolitana de Curitiba. Ele perguntou se eu iria acompanhar o vô na ambulância e eu disse que sim. No caminho, o vô segurava a minha mão com força, assustado, e em um momento acariciou a minha mão e sorriu: isso era um bom sinal.

No novo hospital encaminharam o vô para novos exames e já antes do almoço, quando o meu tio chegou para “trocarmos de turno”, nos confirmaram que o vô tinha tido um AVC isquêmico por dissecação da carótida e que precisaria de uma cirurgia. Eu saí do hospital, almocei e fui para a biblioteca da faculdade tentar pesquisar o que era isso. Anotei tudo que consegui e fui para casa, onde chorei no banho.  Eu não tinha ideia do que era uma isquemia, mas sabia que era grave, muito grave.

A minha foi no final de maio de 2019. Era madrugada e eu estava na UTI, me recuperando de um AVC hemorrágico que sofrera uns dez dias antes. No dia seguinte, o médico me avisou que outra cirurgia cerebral seria necessária e até isso acontecer eu perdi todos os meus movimentos do lado esquerdo: tinha ficado hemiplégica. A cirurgia era necessária, mas tinha medo de voltar, cega, surda ou afásica.

Meu vô teve afasia, que é um problema que afeta a área da linguagem. Basicamente, se a lesão ocorre na área de Broca, a pessoa tem dificuldade em falar, e se a lesão for na área de Wernicke, a pessoa tem dificuldade em compreender. Eu estudei tudo isso nas disciplinas de Linguística na faculdade de Letras, e sempre tive interesse porque o meu avô tinha tido. Queria saber o que poderia ter feito para ajudá-lo, então estudava muito os processos de recuperação fonológica, cogitei até fazer mestrado sobre o assunto.  

Ao acordar da segunda cirurgia, eu me certifiquei que estava vendo, ouvindo e falando: tudo ok. Mas percebi a cicatriz próxima à área da linguagem. “PutX merdX!”. Depois fui movida para tomar o café da manhã, em que os técnicos de enfermagem me receberam animados, mas que falavam tudo embaralhado, tipo final de rave. 

Eu recebi o café e tentei falar café, mas não me lembrava da palavra para aquilo. Estava frio e eu tomei o líquido escuro, o apontei na xícara para uma enfermeira de um jeito impaciente, ela percebeu minha angústia e tentou me acalmar. Eu não entendi o que ela disse, mas ela tocou no meu ombro e falou num tom manso, deveria ter dito algo para me acalmar. Pensei “Wernicke” e procurei me lembrar do que eu tinha estudado na faculdade, para tentar aplicar em mim o que eu estudei para aplicar em meu avô.

Primeiro, tentei ver se eu conseguia pensar em uma língua estrangeira. Nas tentativas infrutíferas, percebi que a enfermeira falava algo familiar. Me concentrei, ela estava falando em francês. A língua de toda a equipe da UTI era francesa. Era assim que funcionava, então? O livro de Neurolinguística falava que primeiro a gente precisava diagnosticar o local da poda linguística: se era morfológica, sintática ou semântica.

Pensando em francês mesmo percebi que estava com dificuldade em fazer coordenações nominais e verbais. Provavelmente aí era a minha poda. E assim, fui fazendo os exercícios, fazia eles a todo momento para aproveitar o ápice da neuroplasticidade (Sim, eu sabia de tudo, estava imensamente preparada para a afasia).

Assim, meses após meses, eu fui voltando a pensar em português, mas ainda tenho dificuldade com a coordenação, porque acho que realmente houve uma poda lá. Ainda hoje tenho que voltar trechos de filmes porque não entendi o que foi dito, e ainda tenho que perguntar: “Por favor, pode repetir o que você disse, eu não entendi” e aguentar a pessoa falando mais alto.

Não vai ser fácil, mas tenho certeza de que assim como hoje voltei a pensar em português, vou voltar a entender os que as pessoas falam certinho, quase como antes. Tenho consciência de que tive muita sorte, minha lesão é gigantesca, mas não se acumulou nas áreas da linguagem. E eu tinha estudado tudo, eu sabia que era reversível. E eu já sabia do caminho do retorno. Desde a experiência com o seu Fabro, eu já tinha algumas cartas na manga sobre afasia como:

– Se gente fala palavrão é porque é uma palavra que podemos substituir por aquela que não lembramos, não é porque de repente ficamos desbocados.

– Não estamos nervosos com você, estamos nervosos por não conseguirmos falar ou entender. Dá raiva mesmo. 

– Um método eficaz de entender o afásico é a empatia: se fosse você o afásico o que tentaria dizer naquele momento, diante daquela situação?

– Se você acha que está sendo paciente com ele, não tem ideia de como ele está sendo paciente com você.

– Fonoaudiólogo é importante, sim!

A afasia é uma das piores sequelas do AVC. Mas a linguagem tem seus meios de ser recuperada, porque, como dizia meu vô “ela é danada”.  Acredite. Aprendi a conversar sem usar nenhuma palavra com quem justamente me ensinou a falar e a colocar uma língua estrangeira na fala de quem nunca a estudou apenas para compreender o que estava sendo dito. O maior milagre da afasia é nos mostrar que a linguagem está nas entrelinhas.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima