A trança de Rapunzel

Cuidar do cabelo é sinônimo de bom gosto e autoestima, tanto para homens e mulheres, e por isso é impossível negar o impacto que temos quando percebemos que ele foi raspado após acordar de uma cirurgia cerebral

De Rapunzel à Medusa, as histórias sempre gostaram de representar no cabelo tanto a força como o terror. E quando temos eles raspados devido a uma cirurgia cerebral, como é que fica?

Desde que os irmãos Grimm publicaram a história de Rapunzel, há milhares de anos, o cabelo tornou-se oficialmente sinônimo de força e candura. É claro que, de lá para cá, muito tempo se passou, houve muitos cortes e tendências, porém nunca o shampoo saiu da moda. O mercado sabe bem disso, e nós também. Cuidar do cabelo é sinônimo de bom gosto e autoestima, tanto para homens e mulheres, e por isso é impossível negar o impacto que temos quando percebemos que ele foi raspado após acordar de uma cirurgia cerebral.

Óbvio que assim que entendemos o ocorrido, sabemos que foi um caso extremo em prol da nossa vida. A aceitação do fato é quase instantânea para a maioria dos sobreviventes de lesão cerebral que passam por essa situação, mas isso não significa que o novo “corte” não abale a nossa autoestima. Abala, sim. Nos sentimos feios usando aquela espécie de capacete de gesso que colocam na nossa cabeça nos primeiros dias, para depois encararmos a substituição do cabelo por uma cicatriz.

Cabelo cresce. Isso é verdade, assim como se te falarem essa frase, é sinal de que o seu recente visual não está dos melhores. E quem passa por uma cirurgia cerebral não está em seu momento mais atraente: nossa cabeça incha, fica um pouco deformada e avermelhada, e contrasta com um corpo esquálido do pós-coma. Todo esse reflexo nos aterroriza, porque temos noção de que o acidente vascular cerebral foi real, que a gente quase morreu mesmo e de que nunca mais seremos os mesmos. Toda essa mudança repentina choca… E dói.

Eu passei por duas craniotomias, um para cada AVC, em menos de quinze dias. Como cada cirurgia foi de um lado da cabeça e só rasparam as regiões em que os cortes foram feitos, fiquei com um visual meio moicano, e como tinha o cabelo muito comprido, o pessoal da UTI fez uma longa trança no meio da minha cabeça para facilitar o meu cuidado. A partir de então, adoro tranças. Para mim, elas são sinônimo de força.

Minhas cirurgias foram tranquilas, pelo menos esteticamente falando. Muitos pacientes têm mais da metade da cabeça raspada e alguns até acordam sem uma parte da caixa craniana. Ela fica guardada na barriga até o cérebro melhorar, para só então a colocarem de volta. À princípio essa técnica pode parecer assustadora, mas apesar de não a ter experimentado, ela é relativamente comum nos nossos grupos de apoio.

Operar a cabeça é muito ruim. Dói, os pontos coçam e a gente fica confuso por um tempo. Tenho a impressão de que a nossa caixa craniana é “fechada a vácuo”, e quando a abrem, os neurônios ficam tão desalinhados, que quando a fecham novamente, precisamos de muito tempo para reorganizá-los. E toda essa bagunça é refletida no nosso visual de recém-operados.

Se para mim, que nem sou muito vaidosa, foi desesperador ficar parcialmente careca, imagino o sofrimento das minhas colegas que tinham suas madeixas como uma das principais formas de sua vaidade. E o pior é que passamos a chamar mais atenção com a falta de cabelo. As pessoas ficam quase hipnotizadas, querendo olhar e ao mesmo tempo desviar a atenção. Só que essas atitudes não são por admiração, mas por certo horror. De princesas, nos transformamos em medusas para a sociedade. Não tem como se esquecer disso.

O fato é que cabelo cresce, cada um no seu ritmo, e é preciso adaptar o visual até que ele volte a preencher a cabeça. Como tive os acidentes no inverno, no começo usava muitos gorros e boinas, tanto para disfarçar como para esquentar o couro cabeludo recém costurado. Também fui à cabelereira e dei a ela o desafio de consertar a minha cabeça, e o resultado foi cortar curto os tufos que sobraram, para acabar com aquele aspecto de “mestre dos magos” que tanto me constrangia.

O crescimento dos novos fios foi um pouco revoltoso. Como os meus cabelos são muito finos, eles tendiam a crescer para cima. E tentava abaixá-los a todo custo, a fim de formar uma tímida franjinha. Sendo sincera, esse método nunca deu muito certo. Como só tinha uma mão funcional naquela época, não conseguia cuidar muito da minha aparência, então quando alguma amiga vinha me visitar, pedia que ela fizesse tranças com o que tinha em volta das cicatrizes, por praticidade e para tentar ter alguma elegância. Elas me davam conforto e a sensação de que tudo aquilo um dia iria passar.

Muitos colegas AVCistas utilizam outras estratégias. Um amigo, raspa todo o cabelo e pede para desenharem com a máquina um risco estiloso do mesmo tamanho da sua cicatriz cirúrgica, que fica do outro lado da cabeça. Assim, ele se sente mais estiloso. Concordo com ele. Algumas mulheres adaptam um visual mais curtinho, inclusive conheço uma que resolveu manter o cabelo raspado, já que foram tantas cirurgias que não valia a pena deixar o cabelo crescer. Acho ela absurdamente linda e poderosa por exibir as suas cicatrizes com orgulho.

Apesar de manter o cabelo comprido, também gosto de mostrar as minhas cicatrizes. Pena que meu cabelo seja muito fino e as escondam, porque as adoro. Elas não estão lá por consequência de algum desvio de conduta ou violência, muito pelo contrário, elas foram feitas para que eu pudesse viver de novo. São o meu atestado de resistência.

Um dia me lembrei que tranças são formadas pelo entrelaçamento de vários fios, com comprimentos e origens diferentes. Assim como nós, sobreviventes, nos unimos, mesmo sendo de lugares diferentes e enfrentarmos sequelas distintas. Depois desta comparação, passei a gostar ainda mais das minhas tranças: elas também representam a minha conexão com os meus bravos amigos AVCistas. Juntos, somos como os cabelos de Rapunzel: fortes, resilientes e cheios de história.

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