A sala do medo

Esta sala não é algo lúdica, na verdade ela é bem real, tangível (todo mundo pode tocá-la) e fica no hospital onde eu fiquei internada após o meu primeiro AVC e em que eu tive o meu segundo

Ter medo faz parte de toda existência. Enquanto, para alguns, enfrentá-lo é uma escolha, outros não têm esse privilégio. Para quem precisa passar por exames de invasivos, conviver com o medo faz parte do dia a dia.

Todo mundo tem medo. Antes dos meus acidentes, costumava ter medo de meus sonhos não se realizarem, e isso me consumia em uma ansiedade profunda. Com o AVC, assim como as minhas roupas vestidas, a minha vida virou do avesso e os meus medos mudaram. Na verdade, eles se concentraram numa sala em que, de tempos em tempos, me encontro: a sala do medo.

Esta sala não é algo lúdica, na verdade ela é bem real, tangível (todo mundo pode tocá-la) e fica no hospital onde eu fiquei internada após o meu primeiro AVC e em que eu tive o meu segundo. A sala do medo é como eu chamo a sala cirúrgica onde eu estive seis vezes: duas vezes para operar o meu cérebro e quatro vezes para passar por um exame chamado angiografia cerebral.

Há duas semanas, precisei fazer mais uma angiografia e estive lá pela última vez. Trata-se de um exame de controle do aneurisma cerebral que tenho na cabeça (especificamente atrás do meu olho esquerdo) e consiste em inserirem um cateter na virilha, pela artéria femoral, até o cérebro, e verificar como andam as coisas por lá, inclusive aproveitar o passeio e procurar outros aneurismas. É claro que o paciente fica anestesiado durante o procedimento (além do mais porque ele precisa ficar imóvel), mas sei lá… O meu corpo às vezes não se dá muito bem com anestesias, e já aconteceu de eu acordar algumas vezes em cirurgias, duas vezes especificamente nesta sala, e pode ser que, a partir de então, ela tenha se transformado na “sala do medo” em minha cabeça.

Além desses flashes de acordar na mesa cirúrgica, eu estava bem consciente de quando fui para a cirurgia do meu segundo AVC, e me lembro dos detalhes que envolvem aquele momento em que encaro a estreita mesa cirúrgica antes de me deitar nela. De certo modo, aquela mesa é o meu primeiro caixão e, na minha cabeça, é como se eu atiçasse a morte cada vez que eu me deito nela.

Todavia, o meu maior medo não é morrer, mas sim de ter outro AVC e ter que passar por tudo o que eu já passei duas vezes pela terceira vez. E com certeza, esse pensamento não seria tão presente se não fosse necessário assinar, antes do procedimento, um termo de conscientização dessa possibilidade, embora ela seja muito rara. É apenas um passo jurídico, mas, para mim, é o início de um pesadelo psicológico. É por cada situação que a gente passa depois de ter um AVC…

Como tudo isso me dá muito medo, durante todo o processo, meu instinto é fugir. E parece que já tenho fama de boa fugitiva neste hospital. Assim que fui internada, entrei numa salinha para tirar toda a roupa e me vestir com a camisola cirúrgica e aquelas pantufinhas finas. Eu estava tão apavorada que minha mão não lesionada não parava de tremer, só ela, a lesionada estava imóvel (em momentos como esse, a minha sequela fica bem aparente). Alguns enfermeiros me cercaram e eu pedi para ir ao banheiro, e nisso, meu “olhar robocop de fuga” já começou a ser ativado: contei os enfermeiros, a “dança” que eles fazem em sua locomoção pela enfermaria neurológica, a localização exata da técnica responsável pela porta de entrada e os acessos às janelas. Acho que os boatos são reais, pois meu cérebro realmente pareceu ser especialista em fuga e a impressão que tive é que toda a equipe já tinha sido avisada disso.

Dois enfermeiros me deitaram numa maca da enfermaria e um deles tentou colocar um soro na minha veia até que o banheiro fosse liberado e, nesse meio tempo, eu ficasse imóvel na cama. Mas eu já conhecia a enfermaria, passei um tempo inesquecível da minha vida lá e no desespero eu me lembrava de tudo. Assim que a porta do banheiro foi aberta, peguei o saquinho do soro com a mão direita (a minha mão não lesionada), saltei da maca e fui para o banheiro. É assim que eu fugia, com o soro na mão! Hollywood tem muito a aprender comigo!

Apesar da vontade de sair correndo de camisola cirúrgica, fiz xixi e voltei para a enfermaria comportadíssima, afinal, o objetivo era cutucar os miolos, não é mesmo? Então, perguntei o nome de toda a equipe porque sei que tenho tendências a perder a memória recente, e o nome deles seria um teste cognitivo para mim pós-procedimento. Depois chegou a anestesista, e contei para ela das minhas lembranças da sala do medo. Combinamos de ela me anestesiar sozinha para eu não ter aquela sensação da equipe médica me olhando como se eu estivesse viva num caixão.

Dessa vez foi menos pesado, porém não pude deixar de dar aquela encarada na mesa cirúrgica. Eu e ela temos história: foi lá que quase morri duas vezes e milagrosamente virei o jogo. E mesmo assim, ela continua sendo o meu bicho-papão, porque diante dela me sinto uma criancinha. Só que nesses microssegundos, precisei crescer e perguntar para a fonte do meu medo “E aí, tá pronto para o 6×0? Encaixei minha cabeça e meu corpo nela recebi a anestesia.

Acordei zonza e com um pouco de afasia. Estava de volta à enfermaria e tudo parecia estar bem. Mais uma angiografia tinha acontecido e precisei descansar para conferirem se o cérebro estava okay. Rotina típica de quem tem lesão cerebral. Depois de algumas horas, o médico veio me visitar e trouxe boas notícias, chamei pelo meu tio, mas disse seu apelido, e o doutor se preocupou um pouco com essa possível incoerência. Alguns testes cognitivos foram feitos e passei razoavelmente por eles. Não lembrava o nome de todos da equipe, mas recordei do nome da esposa e do neném de um dos enfermeiros, que me conhece desde o meu primeiro AVC, em maio de 2019. A gente se reconhece desde a minha primeira quase-morte. Ele sempre me atende e desde então nos atualizamos sobre a vida a cada angiografia. Sinto carinho em seus olhos. Essa história de AVC mexe com o emocional de todos que estão próximos. Haja miolo forte!

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