A “mancada” de Brás Cubas

Para quem sobrevive a um AVC, mancar é usual. Assim que a lesão ocorre, a maioria de nós ficamos hemiplégicos, ou seja, com a metade do corpo paralisada

“Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear: – Não, senhor, sou coxa de nascença. (…) O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita?”

Os trechos desse primeiro parágrafo foram retirados da obra clássica de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1880. E para quem não a leu ou já esqueceu a história, faço questão de resumir esta parte do enredo do meu jeito: Brás Cubas é um jovem “filho de papai” que está em busca de uma noiva para formar uma família. Ele conhece Eugênia, uma jovem de dezesseis anos e se interessa por ela. Os dois começam a sair, com a mãe dela sempre acompanhando, tendo em vista que a moça é uma donzela, e em um desses passeios, ele descobre que ela tem uma deficiência na perna. Isso é o suficiente para ele se afastar e procurar outra noiva, botando a culpa no “destino” e não em seu preconceito.

A primeira vez que li este livro, no Ensino Médio, achei esse motivo um exagero. (Imagina se um cara vai se desinteressar por alguém só porque a pessoa manca!). Depois, botei a culpa na época, achei que deveria ser coisa do fim do século XIX, até o momento em que, depois dos meus AVCs, voltei a andar mancando, e isso já foi o suficiente para atrair olhares surpresos e piedosos na rua, em pleno 2019.

Para quem sobrevive a um AVC, mancar é usual. Assim que a lesão ocorre, a maioria de nós ficamos hemiplégicos, ou seja, com a metade do corpo paralisada. Com a fisioterapia, a neuroplasticidade vai acontecendo, os músculos vão se fortificando e vamos readquirindo movimento, e assim nos tornamos hemiparéticos, ou seja, com metade do corpo parcialmente paralisada. Este é o motivo de mancarmos: parte do nosso corpo não readquiriu mobilidade.  

Pessoalmente, o meu mancar não me incomoda, mas ele parece incomodar muito o outro, pois constantemente ouço a mesma pergunta dirigida à Eugênia: se eu machuquei o pé. Eu sempre respondo que: não, machuquei a cabeça. Tive dois AVCs e o mancar é uma deficiência adquirida. É o meu modo de me empoderar perante a situação, sabe? De cabeça erguida.

Quem nunca se recuperou de um AVC ou não conhece alguém próximo que tenha passado por essa experiência, não tem ideia do quanto é difícil voltar a andar depois dele. Dói o músculo, dói a alma, a gente se desequilibra, se desespera, acha que nunca mais vai conseguir comprar um pão na esquina, que nunca mais vai conseguir subir uma escada. No começo, eu não tinha força nem para me sentar sem apoio, caía: tive que fazer fisioterapia para conseguir me manter na cadeira de rodas. Depois, fui para o andador, e por último, fiquei um bom tempo usando bengala. Hoje ando sozinha e sem apoio. Ando devagar, mas chego aonde eu quero. Para daí chegar um Cubas da vida e me diminuir por causa do meu andar? Sem tempo para isso, mermão, meu mancar é a minha vitória.

A visão de Brás Cubas é aquela mesma história do padrão que se perpetua há anos, séculos: o extremo exigido do outro, sobretudo às mulheres, para satisfazer aquele status quo da perfeiçãotão glorificado nas nossas redes sociais. Aliás, a cabeça de Brás Cubas é tão contemporânea que, se vivesse nos dias de hoje, arrisco que seria um daqueles influencers bem tóxicos e superficiais, que nada têm a dizer de diferente. Afinal, viver de sonhos e de aparência ele sabia muito bem, ao ponto de (ALERTA DE SPOILER) morrer em decorrência de uma ideia sem nenhum fundamento.

A genialidade de Machado de Assis conseguiu retratar, por meio do sarcasmo, o vazio humano ao vivermos apenas de aparências, e especificamente neste episódio de Eugênia, ele mostra que a maior deficiência não está nela, mas no olhar de Cubas. Acredito nisso porque, sendo negro e epilético numa época extremamente preconceituosa, Machado sabia muito bem o peso do olhar do outro, mas também sabia que o seu valor era muito superior a isso, e seguiu em frente. Assim como nós, sobreviventes, mancos e bonitos como Eugênia continuamos seguindo. Pois é, meu caro Cubas, melhor ser manco de uma perna do que de noção. Antes de julgar o outro, olhe para si mesmo. Como dizem os capacitistas: se manque!

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