A dor do outro

Desde que me conheço por gente frequento velórios. Ninguém gosta de ir a velórios, inclusive eu. Sempre fui por julgar importante a presença, para que a pessoa que estivesse sofrendo aquele momento tão doloroso me visse e soubesse que me importo

Tragédias fazem parte da vida. Todos nós, cedo ou tarde, passaremos por um momento difícil e, consequentemente, um período de luto. A dor e o luto são inevitáveis e, em geral, ainda não sabemos lidar com eles. Afinal, por que é tão difícil aceitar a nossa dor e a do outro?

Desde que me conheço por gente frequento velórios. Ninguém gosta de ir a velórios, inclusive eu. Sempre fui por julgar importante a presença, para que a pessoa que estivesse sofrendo aquele momento tão doloroso me visse e soubesse que me importo. Então, se pudesse, sentava-me ao seu lado apenas para ouvir o fluxo de ideias (que variam de memórias da pessoa falecida a informações aleatórias sobre o tempo e o gosto ruim do café) ou conversar sobre o que ela estivesse disposta. Gosto de estar presente. Há alguns anos, fui ao velório de um tio de uma grande amiga e ela comentou que eu era a melhor companhia para as horas de luto. Hoje acredito nela. Digo isso porque a maioria das pessoas não sabem lidar com o luto. Eu tenho uma ideia do porquê: ele é feito apenas de emoções. E ninguém aprende a lidar com emoções na escola e no ambiente de trabalho; elas são sempre subjugadas apesar de nós, seres humanos, também sermos feitos delas.

Os AVCs não foram a primeira tragédia da minha vida, nem serão a última. Todavia, ao lidar com o luto de sobreviver ouvi muitas palavras de amigos que queriam só ajudar, mas que me machucaram. Algumas foram em tom de barganha, como: “mas você é destra e perdeu o lado esquerdo”. Ora bolas, eu tinha consciência disso, mas não me importava naquela hora. Eu só estava profundamente triste porque tinha perdido metade do meu corpo em um acidente vascular cerebral aos trinta e quatro anos. E isso era profundamente relevante. Só queria chorar e ficar triste, mas parecia que as pessoas não me permitiam fazer isso. Era um jeito passivo-agressivo de agir comigo porque aos olhos externos eu estava reclamando demais.

Algo muito parecido aconteceu em dezembro de 2017 quando o filho de uma grande amiga (meu afilhado) morreu com cinco dias de vida. Ele tinha muitos problemas genéticos que o impossibilitariam de ter uma vida com qualidade. Todos nós sabíamos disso desde o exame de translucência nucal realizado aos quatro meses de gestação. Como madrinha, eu acompanhei todo o processo de gestação e o visitei durante todos os dias de UTI neonatal até o momento de seu enterro e, nesse meio-tempo, ouvi algumas bobagens ditas para os pais como “ele tinha muitos problemas, foi melhor assim” ou “vocês são um casal novo, daqui a pouco vem uma criança saudável e serão muito felizes”. O que eu posso dizer é que ela, a mãe, sabia de tudo isso, porém esse tipo de comentário era um desrespeito ao seu sofrimento pela morte de um filho, independentemente da idade e condição de saúde dele. Ela não queria outro naquele momento, porque ele não era uma coisa que poderia ser trocada: era um filho falecido.

Sofri muito com a perda do meu afilhado e na época eu ouvi que estava exagerando pois não era um filho meu. Pois bem, quem me disse isso estava profundamente enganada porque muitos meses depois eu tive um aborto espontâneo e senti uma dor tão intensa quanto àquela; para mim, foram as perdas de dois bebês que eu amava muito. Ponto. E quando foi a minha vez eu fiquei quieta, só falei praticamente com o meu companheiro na época porque eu não queria que aquele sofrimento fosse minimizado assim como o foi o da minha amiga. Eu só queria ter paz para poder sentir o meu luto.

Nós avcistas somos o tempo todo menosprezados em nosso luto com o acidente e as nossas limitações após ele. Recebemos milhares de comentários passivos-agressivos nos apelidando em referência às nossas sequelas, nos dizendo como devíamos agir ou que estamos reclamando demais. Sofremos muitos abusos psicológicos perante as nossas dores, e tudo isso é tão opressor que chega a ser pior do que o próprio AVC.  A pessoa que vive um luto precisa falar e chorar muito, porque esse é um jeito de o cérebro dela entender o que aconteceu, avaliar o que se pode ou não fazer e, a partir de então, criar uma estratégia de recuperação. Pedir para mudar de assunto nesse momento é, no mínimo, indelicado.

Logo após os acidentes, um antigo amigo veio conversar comigo e acabou me contando que o seu filho pequeno tinha sido recém diagnosticado com autismo e que estava desesperado. Sim, ele estava confuso e desesperado porque não sabia o que fazer para minimizar a dor que sentia como pai diante de tais circunstâncias. Assim como eu no meu pós-acidente, ele entendia que havia tratamentos, que havia alguns caminhos, mas não era isso que ele queria ouvir naquele instante, ele só queria sentir a dor. E apesar de ser uma situação diferente, a dor dele era tão legítima quanto a minha, porque o sofrimento não pode ser quantificado, inserido numa tabela de Excel ou ser estimado em um determinado tempo para passar (talvez ele nunca passe). A dor existe para cada um de nós porque somos humanos. Todavia, na hora de lidar com a dor do outro, parece que esquecemos disso.

Apesar do sistema tentar nos iludir, não somos máquinas. Nós sofremos quando perdemos: seja um emprego, um relacionamento, a mobilidade, um pai ou um filho. Lidar com o luto é muito individual e, se não falarmos, não nos desesperarmos e não sentirmos, nós nunca nos daremos a chance de nos recuperarmos. Porém, para quem sofre, esse sentimento parece ser errado e chato perante esse tratamento hostil de terceiros. Entretanto, quem não consegue passar por isso em paz nunca se recupera — por isso a frase “Vai passar” é muito desnecessária. A gente nunca sabe o tamanho da dor que o outro sente, não podemos senti-la por completo, mas podemos acolher e respeitar o choro alheio, pois chorar e sofrer é do ser humano.

Eu fiquei vinte e um dias à beira da morte numa UTI, sobrevivendo em condições muito difíceis e, na hora H tudo que eu tinha era a minha memória, que é estruturada pelas minhas emoções.  Acredito que essa seja a minha maior dádiva. Hoje sou profundamente grata por meu afilhado ter existido, assim como o meu filho que não chegou a se desenvolver, porque eles são importantes na minha memória, e sempre farão parte de um momento muito doce da minha história e ponto. Tudo isso basta.

Os momentos de dor não podem ser cronometrados ou entorpecidos com álcool e antidepressivos, esses subterfúgios são incapazes de amenizá-los. A dor do outro deve sempre ser respeitada, ela é tudo que a pessoa consegue lidar naquele momento. A pessoa enlutada tem o direito de se desesperar e falar coisas aparentemente desconexas porque, simplesmente, ela é humana. E tudo isso importa.

PS: Para quem quiser se aprofundar no assunto de um modo mais leve, sugiro assistir ao filme Divertidamente (Pixar). Nele a tristeza também é abordada de maneira necessária.


Para ir além

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O MST – na (obtusa) visão de muitos

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