Um clássico sobre a colonização chega ao Brasil

Clássico holandês Max Havelaar tem 150 anos mas dialoga com realidade do país

É incrível que Max Havelaar (Ayinê, 584 pp. R$ 84,90), de Multatuli, tenha sido publicado em 1860. Poderia ter sido editado ontem. Lançado agora pela primeira vez no Brasil, no pior momento político do país em décadas, o livro parece falar diretamente sobre nosso país atual. E da maneira mais inventiva possível.

O romance tem uma arquitetura tão complexa que fica até difícil de dar uma sinopse. Em linhas muito gerais, seria isso: “Batavus Droogstoppel, mercenário corretor de café, recebe uma caixa cheia de manuscritos de um conhecido seu, Max Havelaar, e pega um deles para ler, onde Havelaar conta suas experiências como ex-assistente-residente nas Índias Holandesas (atual Indonésia), lutando contra um sistema político corrompido.”

Livro de contos, poemas, autobiografia, parábolas, notas, cartas, documentos… Havelaar tem tudo isso.

Multatuli, ou melhor, Eduard Douwes Dekker (1820-1887), sabia bem do que estava falando. Ex-assistente-residente, cargo semelhante ao de vice-governador, descreve praticamente tudo o que aconteceu consigo mesmo no período em que exerceu o cargo. Tentou mostrar como o governo holandês explorava e massacrava o povo indonésio. Foi demitido.

Multatuli escreveu o romance em inacreditável um mês e meio, em 1859. Já havia o rumor de que um ex-assistente-residente estava escrevendo um livro bomba e o meio político ficou apreensivo.

Dito e feito. O romance causou uma balbúrdia. Max Havelaar surtiu efeito, lentamente, mas surtiu. O desejo do autor de ver sua denúncia em todos os cantos do planeta se concretizou. Aos poucos foi sendo traduzido para dezenas de línguas. Até a aparição do diário de Anne Frank, em 1947, Max Havelaar foi o livro holandês mais traduzido do mundo.

Van Gogh cita Multatuli em suas cartas. Sabe-se que Lênin leu o diversas vezes. Mahler discutia o livro durante jantares na casa de amigos. Freud colocou Multatuli no topo de “bons escritores amigos”. D.H. Lawrence escreveu o prefácio de uma tradução inglesa de Havelaar.

A primeira aparição de Max Havelaar no Brasil foi tímida, apenas um breve trecho consta em Mar de Histórias, em tradução do alemão de Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Rónai.

O livro sai agora num momento em que há um atualíssimo diálogo com a política brasileira e mundial, de um modo geral.

Droogstoppel poderia ser perfeitamente um eleitor de Bolsonaro. Em diversos momentos ele interrompe a narrativa de Havelaar, que comprova a exploração contra os indonésios dando documentos, para declarar que elas são falsas, diz que, segundo mensagens de amigos, as coisas nas Índias Holandesas estão bem. Sim, já existia fake news em 1860. Ele acha entediantes as passagens em que vilarejos são destruídos, pessoas são mortas, mulheres são estupradas. Tem vontade de pular esses capítulos. Mas se diz imensamente religioso, vai à missa todo domingo. E não tolera mentiras. É a hipocrisia em estado puro.

Desde o lançamento de Max Havelaar, os holandeses são obcecados com a colonização que fizeram da Indonésia. Qualquer criança de 10 anos sabe sobre o assunto, é estudado nas escolas. Mexem o tempo inteiro nessa ferida, que afeta milhares de famílias até hoje. Muito se escreveu sobre isso, e ainda se escreve. Com certeza, é o principal acontecimento histórico holandês recente, pau a pau com a Segunda Guerra.

É muito curiosa a seguinte foto, na inauguração da estátua de Multatuli, em Amsterdã, em 1987, onde a Rainha Beatrix olha de baixo para cima justamente o autor holandês que mais atacou o governo de seu próprio país.

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