Gilberto Gil é daqueles nomes que dispensam apresentações no panteão da música popular brasileira. O artista baiano é voz ativa dos movimentos culturais do Brasil desde a década de 1960, com legado irreparável na forma de pensar e abordar a arte brasileira.
Nesses anos todos, Gil esteve aberto a redescobertas enquanto artista e figura pública. Adotou o violão sem desmerecer a guitarra, resgatou a ancestralidade africana e a tornou protagonista com o jazz americano, foi ministro da Cultura por cinco anos e nunca arredou o pé de suas convicções sociais.
Prestes a completar 82 anos em 26 de junho, Gil se vê em mais um estágio de experimentação artística. O cantor desembarca em Curitiba com o show “Amor Azul”, em 9 de novembro, no Teatro Positivo. O concerto faz sua estreia em solo brasileiro a partir da capital paranaense após apresentação aclamada por público e crítica em Paris, com três apresentações lotadas, exibidas cinco vezes na televisão francesa e aplaudido em pé cada noite.
O espetáculo é uma ópera que trata do amor entre o deus hindu Krishna e a mortal Rhada. Serão apresentadas 47 músicas inéditas, compostas por Gil e pelo maestro italiano Aldo Brizzi com base nos poemas do artista indiano Jayadeva Goswami, do século 11. Cerca de 160 músicos e artistas estarão ao lado de Gil no palco, interpretando o encontro dos mais variados ritmos brasileiros, africanos e orientais. As vendas são do Disk Ingressos, com realização da CULT! Produções.
Em entrevista à coluna Cultura para Todos, Gilberto Gil conta o processo de criação do espetáculo, a relação do hinduísmo com sua fé, antecipa detalhes sobre a redução de sua agenda de shows e revela o que pretende fazer no futuro.
Sua carreira sempre foi marcada por reinvenções e exploração de gêneros diversos. Como se encaixa a ópera “Amor Azul” nesse cenário de constantes mudanças?
Meu envolvimento com esse trabalho nasceu de uma aproximação, primeiro por amizade. Foi com o Rogério Duarte, poeta, artista plástico, um grande amigo ligado a mim, ao Caetano [Veloso], a todos nós. Ele, envolvido com Hare Krishna, se tornou interessado em vários textos e acabou fazendo a tradução do Bhagavad Gita [texto sagrado hindu]. Através disso, ele chegou ao poema do Jayadeva, um poeta de mais de mil anos atrás na Índia, que fez esse trabalho sobre os deuses hindus e escreveu um poema sobre Rhada e Krishna, que deu ensejo a essa ópera. O Rogério sugeriu ao Aldo Brizzi, a quem eu me refiro como o eixo do trabalho, que se fizesse uma ópera sobre esse poema do Jayadeva. O Aldo é um músico contemporâneo ligado à música experimental, mas também muito aproximado do mundo da ópera, especialmente a que extrapola o campo convencional clássico das óperas conhecidas, dos grandes autores. Ele seguiu a recomendação do Rogério, e acabamos nos sentando para desenvolver esse poema. Tivemos a colaboração de André Vallias, também um artista, estudioso dos textos poéticos contemporâneos. Então eu, ele e Aldo trabalhamos sobre um libreto, adaptando o poema de Jayadeva a um contexto de ópera. Depois, eu e Aldo fizemos a música para esse libreto e a intitulamos de Amor Azul, uma referência direta à cor de Krishna. Levamos mais ou menos uns três anos fazendo esse trabalho todo de construção das 47 músicas que compõem a ópera. A primeira opção foi fazer a ópera-concerto antes de levar ao campo cênico propriamente, e a estreamos em Paris, em dezembro do ano passado, no Auditório da Radio France. Agora estamos trazendo essa versão para o Brasil, sendo que Curitiba vai ser a nossa primeira parada
O próprio nome denuncia a ode ao amor que é o libreto. Há nesse trabalho uma espécie de reação ao cenário turbulento que o Brasil enfrentou e ainda enfrenta nos últimos anos?
Eu não sei lhe dizer isso com alguma precisão e certeza porque é um poema de mais de mil anos, associado a uma cultura muito importante para o desenvolvimento do mundo ocidental e com raízes no Oriente, que é a Índia e toda aquela atmosfera religiosa, intelectual, poética e política. É uma história de amor entre os deuses do panteão indiano, um envolvimento de Krishna, suas amantes e Rhada. A importância é a origem nesse campo extraordinário da vida cultural do mundo, em especial da Índia, depois de milênios e da construção de uma cultura que transbordou para o resto do mundo e mantém seus traços importantes, com mais de 300 deuses sendo cultuados até hoje. Acho que a importância para o Brasil e para o mundo ocidental é a reafirmação dos traços profundos que a Índia tem na construção da cultura ocidental, com aspectos religiosos, filosóficos, políticos. O Brasil acaba também compartilhando desse resgate, com uma cultura jovem em relação à Índia, mas com traços importantíssimos de relacionamento com esse campo indiano. Um deles é o traço étnico-racial. Pertencemos a uma civilização aqui no Brasil que é mestiça, composta da convergência desses vários mundos culturais, da Europa, Ásia e África, essa mais diretamente associada a esses 500 anos de Brasil, desde a chegada dos elementos da cultura africana ao país. Então acho que o Brasil se encaixa, digamos assim, ao propósito-fim de um projeto como “Amor Azul”.
A ópera parece ser também a união de vários estilos musicais presentes ao longo de sua vida, como o samba, afoxé, bossa nova e ritmos orientais. Qual o desafio de orquestrar essa profusão toda em uma narrativa única e com a presença de música clássica?
O encarregado de fazer essa transposição do lado clássico mais rigoroso, da música orquestral da ópera, foi o Aldo, pelo seu tipo de formação nesse campo, mas também uma formação na música dodecafônica [sistema de organização musical], serialista, moderna e contemporânea. Como ele é muito entusiasmado em relação à música popular brasileira, a proposta foi fazer, a partir dessa atualização do libreto do poema, uma ópera mestiça, com todos os matizes desses campos culturais asiáticos, africanos, europeus, americanos e agora brasileiros. O desafio foi adequar essa multiculturalidade, essa paleta de cores variadas a uma música que abraçasse todos os elementos, dando a eles todos uma conotação contemporânea, um aggiornamento [atualização], como diriam os italianos. Mas o principal responsável foi o Aldo. Hoje em dia, ele é envolvidíssimo com a música negra da Bahia, com candomblé. Ele vem de uma ópera que ele próprio escreveu ligada a essa temática. E eu trouxe os ingredientes da minha longa e cinquentenária experiência no campo da música popular do Brasil, com todas essas abordagens que você citou, a música europeia, americana, o jazz, o rock, enfim, esses aspectos todos daquilo que a gente chama de música contemporânea.
O Aldo citou que um dos desafios da ópera é resgatar seu apelo popular e reabituar o povo a essa natureza dos espetáculos. O senhor enxerga em Amor Azul essa missão e um possível pontapé para a repopularização do gênero?
A gente sempre espera que sim, né!? Estamos fazendo o trabalho, gastando nossas energias, nosso tempo, aplicando nosso conhecimento de música, de poesia etc., na expectativa de que isso possa passar a interessar. O fato, por exemplo, de que os ingredientes da música popular brasileira e da bossa nova estejam presentes nessa ópera nos dá a expectativa de que isso possa interessar a esses novos públicos surgidos nos últimos 20, 30 anos no Brasil e que acompanham, ao mesmo tempo, uma renovação do interesse pela música clássica. Essas pontes e misturas talvez deem a Amor Azul uma capacidade de impregnação e sedução desses novos públicos e, quem sabe, o Brasil possa ter especialmente nesse sentido de renovação da ópera, que se dá no mundo inteiro hoje e que o Brasil também participe disso.
E com todos os “temperos” que só Gilberto Gil tem.
[Risos] Vamos ver no que dá. Nossa apresentação da versão concerto em Paris foi muito bem recebida pela crítica, pelo mundo especializado da música clássica, pelo público. A gravação da ópera caminhou muito bem nos meios televisivos da França e da Alemanha. Possivelmente essa própria versão da gravação em Paris venha para o Brasil, mas a partir de Curitiba vamos ter os registros de Amor Azul a partir dos modos brasileiros de registrar. A minha participação, além da composição com o Aldo e os retoques no texto, é cênica mesmo, tocando e cantando alguns trechos, algumas partes e canções. O modo cancionista da música popular brasileira entra um pouco na construção geral da ópera e eu me incumbo de ser o intérprete de alguns desses trechos abrasileirados, digamos assim, da música da ópera “Amor Azul”.
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Até quanto a essa questão de interpretação, desde sua cirurgia nas cordas vocais, em 2007, o senhor tem condicionado a voz a notas mais brandas nos palcos. Qual o desafio considerando isso e a própria idade para entoar uma ópera de 47 composições?
O meu tipo de intervenção teve o cuidado da minha parte de adequar a minha qualidade vocal atual ao modo da exigência de interpretativa que a ópera faz. Canto canções suaves, trechos abrasileirados, com esse adocicado brasileiro. Portanto, adequados a minha qualidade vocal atual aos quase 82 de idade, tendo que cuidar e fazer um trabalho que valorize esse estágio da minha voz envelhecida de hoje em dia.
Aproveitando a idade, já foi declarado que, nos próximos anos, o senhor deseja reduzir drasticamente a agenda de shows. Qual a sensação de estar nesse limiar com um trabalho portentoso como o de Amor Azul e o que pretende fazer com o “tempo livre”?
Continuar no cultivo natural das minhas ambições intelectuais e artísticas no estágio adequado a esse limiar de vida. Quero dizer, viver o resto dos meus tempos nesse mundo cultivando a música da maneira mais adequada possível às minhas condições, ao meu fluxo energético. Continuar cantando um pouco, mas diminuindo sensivelmente esse empenho exigido pela estrada e pela programação intensiva que as excursões requerem. Por exemplo, há pouco mais de um mês, fiz uma viagem pela Oceania, tocando e cantando lá com os meus meninos, dois filhos e dois netos. Adequando o trabalho a essa redução de intensidade que a o limiar da velhice requer.
Para a gente resgatar um pouco também da sua trajetória, em 1982 você disse a célebre frase e estrofe “a fé não costuma faiá”. Agora, em 2024, o senhor apresenta uma grande obra que é também um tributo a figuras sagradas do hinduísmo. Como que tem sido o tratamento desses temas de cunho religioso com a sua própria espiritualidade?
Jayadeva é um poeta da cultura hindu e védica e tem muito a ver com uma aproximação que já vem de algum tempo na minha vida desses mundos das filosofias orientais, incluindo China, Japão, mas especialmente a Índia. Esse grande panteão indiano sempre me interessou, a partir de pelo menos 40, 50 anos para cá. Eu tenho uma proximidade mesmo com todo esse campo e essa fé fronteiriça ao mundo filosófico. Esse interesse tá vivo em mim, tá muito atual, por isso que eu me dediquei e atendi ao chamado do Aldo para fazer com ele essa ópera e esse tributo ao grande poeta Jayadeva e um tributo extensivo a todo o campo das entidades religiosas do mundo hinduísta. Tudo isso tem mesmo sido parte já da minha vida nos últimos anos e vai continuar sendo.
Nessa ideia das suas atividades e de seus interesses que ainda permanecem ativos, hoje o senhor com 81 anos, quase seis décadas de carreira, inúmeras conquistas no Brasil e no mundo, uma família extensa, multitalentosa e cheia de amor. Há algum desejo que o senhor ainda pretende realizar em vida?
O desejo de estar apto a levar adiante essa caminhada, continuar indo adiante com esse “saco nas costas”, esse “cesto na cabeça”. Enfim, essas coisas que a vida vai dando, essas acumulações aqui e ali que a vida foi dando. A família tem sido uma delas. Hoje os meninos estão criados e muitos deles se tornaram artistas, interessados nesse campo da vida poética, da vida literária, da vida musical, da vida filosófica. É isso, eu quero levar adiante até o fim, até o momento de passar para outra dimensão.
Gilberto Gil & Aldo Brizzi – “Amor Azul”
Quando: 9 de novembro (sábado), 21h
Onde: Teatro Positivo (R. Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5300 – Campo Comprido, Curitiba – PR)
Vendas: Disk Ingressos
Produção artística: Alegro
Realização: CULT! Produções