Curitiba recebe em 9 de novembro a ópera “Amor Azul”, interpretada e composta por Gilberto Gil ao lado do maestro italiano Aldo Brizzi. Os artistas buscaram inspiração na mitologia e literatura indianas para a criação do espetáculo, que acompanha o amor entre o deus Krishna e a mortal Radha.
A ópera estreou em Paris, em dezembro de 2023. Sucesso na crítica francesa e aplaudida em pé pelo público nas três noites de exibição, “Amor Azul” acontecerá no Teatro Positivo e já conta com metade dos ingressos vendidos. A realização é da CULT! Produções.
Com 160 músicos no palco, orquestra e coro lírico, mistura de gêneros e estilos musicais, a obra já é considerada um marco nas carreiras de Gil e Brizzi. O regente italiano foi o responsável em equilibrar a música clássica e os ritmos contemporâneos, integrando samba, afoxé e bossa nova ao libreto. O processo todo, ao lado de Gil e com contribuição do poeta André Vallias, durou cerca de seis anos.
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O maestro
Brizzi, 64, mora em Salvador (BA) e é diretor musical do Núcleo de Ópera da Bahia (NOP). Com quatro décadas de carreira, foi aluno do regente americano Leonard Bernstein e trabalhou com o poeta e também maestro italiano Giacinto Scelsi.
Nascido na comuna de Alexandria, Brizzi rodou o mundo a trabalho, tendo sido regente da do Festival de Darmstadt (Alemanha) e da Filarmônica da Radio France, além de trabalhos no México, em Portugal e outros países.
Em 1999, o músico virou professor visitante da Universidade Federal da Bahia, onde logo fixou residência. De nome sugestivo a sua nova nacionalidade, lançou o disco “Brizzi do Brasil” em 2002, tendo composições próprias gravadas nas vozes de Gil, Caetano Veloso, Margareth Menezes, Arnaldo Antunes e outros nomes da MPB.
Agora, entre apresentações na Europa e no Brasil, o compositor de “Amor Azul” cedeu uma entrevista à coluna “Cultura para Todos”. Diretamente de Salvador (BA), Brizzi falou da concepção da ópera, expectativas para a apresentação em Curitiba e o resgate da música clássica como música popular.
Você chegou a comentar que a composição dessa ópera seria uma “loucura”. Por que a decisão de seguir com o projeto?
Porque vi que tínhamos condições. Esse personagem de Jayadeva, o grande artista e sábio iluminado, é praticamente uma projeção de Gilberto Gil na Índia de mil anos atrás. Um criador que é tocado pelos deuses e que consegue dialogar com os deuses para fazer a beleza tornar-se uma coisa material e para o público.
Fiz essa proposta “indiscreta”, e ele (Gil) aceitou. A partir desse momento, começamos a trabalhar. Como dizem alguns compositores, ópera é como um casamento. Não se faz em cinco dias, são anos de trabalho, foi um casamento artístico. Um grande processo, de grande aprendizado, eu explicando os segredos da parte dramatúrgica, como resolver na música, e Gil resolvendo da forma dele em bossa nova, samba, afoxé. Aprendi muito, foi realmente uma grande experiência.
Você já trabalhou com inúmeros artistas consagrados da música, tanto nacional quanto internacional. Como é dividir o palco e esse trabalho com o Gil, que já é seu amigo há tanto tempo?
É sempre uma grande emoção e grande alegria. Eu estudei regência e direção de orquestra com Leonard Bernstein, então sei que temos que passar a emoção ao público, não ficarmos emocionados. Já trabalhei muito, fui o regente de várias estreias de Ennio Morricone na Europa, por exemplo. Estou acostumado a subir no palco com nomes muito importantes, mas com Gil tem uma cumplicidade porque há uma admiração recíproca, em que cada um pega o melhor do outro. Essa possibilidade de estar com um dos maiores músicos do planeta no palco é não só uma alegria, mas, em cada momento que ele abre a boca para cantar, é sempre uma grande lição musical.
Apresentamos “Amor Azul” três vezes em Paris e cada dia ele resolvia as coisas de uma forma muito natural, como só os grandes artistas podem fazer. As coisas mais complexas com uma naturalidade que parece que tudo flui, mas que os outros não conseguem nem chegar perto. E aí que se vê o grande artista, uma simplicidade e uma complexidade enorme no mesmo instante. Para o público, isso é beleza, força, energia e magia.
Como foi incorporar todos esses elementos da música popular brasileira, de bossa nova, samba, afoxé a uma ópera?
Faço isso em todos os meus trabalhos. Todas as minhas óperas querem retomar a raiz popular da ópera. Na época de Giuseppe Verdi, a música dele era a música popular da época. Ele chegou a proibir o tenor de cantar publicamente a ária que depois ficou a mais famosa de “Rigoletto”, “La dona è mobile”, simplesmente porque não queria que as pessoas da Praça da Scala cantassem a música antes da estreia.
“Amor Azul” quer ser a mesma coisa, que é de o público sair do teatro e ficar cantado as músicas. Isso aconteceu a partir dos ensaios de “Prelúdio”, aquele trechinho de teste que fizemos em 2017, em que os músicos e até o público e gente da produção ficavam cantando trechos da música. Cada um tinha uma música preferida.
Na ópera é assim, há uma ideia que é coisa para uma elite. Isso pode ter acontecido em alguns lugares e em alguns momentos, mas a ópera era antes o que hoje é o cinema. Com as revoluções tecnológicas, a ópera ficou um pouco mais recuada e começou a produzir coisas mais intelectuais, mas agora tem uma retomada total. E “Amor Azul” é um desses exemplos da grande retomada de raiz popular da ópera.
Como você espera que o público brasileiro vá reagir à ópera? Acha que “Amor Azul” pode construir um caminho para a ópera ser algo mais comum para o grande público?
Para que a ópera seja um caminho mais comum para o público, tem que ter óperas. “Amor Azul” é uma dessas estrelas que vai traçar esse caminho. A gente quis fazer uma obra com DNA profundamente brasileiro, tem sempre a canção brasileira como base de cada momento dela.
São 47 músicas inéditas de Gilberto Gil, tocadas pela primeira vez no Brasil. Músicas que os técnicos de som cantavam nas cantinas enquanto tomavam café, dizendo “essa é minha preferida”, “eu prefiro a outra”. Tem melodias muito lindas, harmonia com toda a sabedoria de Gil da bossa nova, que eu exaltei num complexo de 160 músicos entre orquestra e coro, sem perder aquela batida tradicional. É por isso que temos também três percussionistas afro-brasileiros, porque tem muito toques de afoxé, muitos toques e ritmos tipicamente brasileiros que as orquestras não sabem tocar com esse swing.
Tem um apelo popular muito grande nesse sentido e, para quem não gosta de ópera, tem o apelo da novidade de uma proposta dentro de uma linguagem junto com o grande repertório tradicional.
Em outros trabalhos, como “Ópera dos Terreiros”, você tratou de questões religiosas de matriz afro-brasileira. Esses temas te despertam um lado pessoal ou até mesmo religioso?
Não é religioso, é um interesse para toda a força e a energia que algumas manifestações podem comunicar e enriquecer outras linguagens. Já comecei assim quando descobri a música popular brasileira. Eu tinha mais ou menos 30 anos e foi um choque para mim quando fui por acaso ao Brasil e me encontrei com a MPB. Achei essa música tão contemporânea e achei que podia ser uma via para comunicar a contemporaneidade dessa forma, porque as canções, por exemplo, italianas e francesas dos últimos 30, 40 anos são só comerciai. Aqui, apesar de algumas serem grandes sucessos comerciais internacionais, têm algo a dizer e é expressada a contemporaneidade do ser humano hoje ao mundo.
A música brasileira, para mim, é como se fosse música clássica nesse sentido, e comecei a me interessar nos ritmos. Quando ouvi Olodum pela primeira vez, vi que tinha um potencial nessa rítmica e em todo esse timbre musical que surge dos tambores e que podia dar uma nova energia a outras linguagens. Isso foi Augusto de Campos que percebeu imediatamente, porque fiz um disco “The Labyrinth Trial”, e ele escreveu uma página inteira sobre esse trabalho na Folha de São Paulo, intitulado “Brizzi do Brasil”.
Ele fez quase um poema: “Bem-vindo, Aldo Brizzi, que a brisa do Brasil deslumbra, mas não dobra”. E aí começou o interesse de Caetano Veloso, muito ligado a Gil, e me aproximei dos cantores brasileiros dessa forma. Virei amigo porque todos, além de grande cantores e compositores, têm sempre um interesse cultural muito vasto.
“Amor Azul” é fruto dessa semente que foi lançada naquela época, em 1998. Depois escrevi 12 canções, mesmo não tendo escrito canções antes na minha vida. Falei a Caetano e queria mostrar as composições, e todo mundo falou que ia participar do disco [“Brizzi do Brasil”]. Então, as primeiras canções da minha vida foram gravadas por Caetano Veloso, Teresa Salgueiro, Gil, Tom Zé, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes, Margareth Menezes. É um disco que funciona muito bem como evento cultural metabrasileiro.
E depois me casei aqui e fui vivendo entre Europa e, quando podia, Salvador, e agora é “Amor Azul”.
Agora é Brizzi do Brasil, de fato?
[Risos] Exatamente, de fato. Essa energia de linguagem mais contemporânea está em quase todas as minhas músicas. As outras óperas não são para um fato religioso, mas para um fato de história do Brasil. “Ópera dos Terreiros” conta uma história de 1840, entre dois escravizados africanos, um banto e uma nagô. É um amor impossível, dessa viagem sem retorno com todos os inquices e os orixás não vistos pelos humanos. É um pouco o mundo mágico de Shakespeare numa África baiana.
E usei cantores líricos que são os mesmos que vão cantar “Amor Azul”, que são os cantores da Bahia. E abro um parêntese: o Núcleo de Ópera da Bahia tem uma especialidade, que são cantores líricos que podem cantar como Bocelli, mas que têm um dendê, um sabor na voz.
Então, essa é a popularização da ópera, a possibilidade de abranger muita coisa e que seja natural para todos aqueles que vão ouvindo isso, mesmo para quem nunca ouviu uma ópera. Sempre tem muito de o público assistir pela primeira vez uma ópera e depois vai para casa e passa a procurar outras óperas para ouvir.
Gilberto Gil & Aldo Brizzi – “Amor Azul”
Quando: 9 de novembro (sábado), 21h
Onde: Teatro Positivo (R. Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5300 – Campo Comprido)
Vendas: Disk Ingressos
Produção artística: Alegro
Apoio: Núcleo de Ópera da Bahia
Realização: CULT! Produções