Cá no meu canto controlando a paranoia de estar ou não estar infectada pelo coronavírus decido que vou ficar longe dessa história da menina vítima de tamanha violência. “Não posso ajudar, não vou comentar, não vou compartilhar nada…” Em casos como esse admito aflorar em mim meu instinto mais selvagem: “mataria o estuprador”, ouço uma voz interior.
Mas basta uma espiada numa rede social, num site qualquer de notícia… Não tem como fugir. O caso bate na sua cara e, com o passar dos dias, as informações acrescentadas ao drama da criança só pioram.
Em que momento nós, jornalistas, largamos a ética profissional e nos jogamos sem um único zelo a expor o passo a passo da romaria da Justiça aos hospitais, em busca de acolhimento a um aborto legal? Quebramos todas as regras do sigilo para preservar a identidade da menina e garantir a ela um futuro minimamente anônimo.
Em que momento essa ex-feminista Sara Winter virou a chave que separa consciência e demência e passou a praticar toda sorte de barbáries a ponto de, agora, divulgar nome e endereço da menina, e liderar um grupo de gente torpe a chamar a criança e os médicos de assassinos em frente a um hospital?
O Brasil dos Bolsonaros, das Damares, dos Malafaias… jogou sua hipocrisia lá para cima de tudo, para deleite de uma massa considerável da população que escondia sua pequenez em buracos bem guardados e agora se sente protegido e estimulado a exibir.
A imprensa não pode engatar reboque e seguir espelhando a grosseria, a violência e a falta de ética que dominam o país no momento. Surgirão muitos outros casos de crianças submetidas a estupro, muitas outras crianças já foram vítimas e carregam seus traumas, provocados inclusive por padres e pastores que representam instituições religiosas e que correram condenar o aborto.
A vida dessa menina – e das outras tantas agredidas – deve ser protegida e nada justifica uma imprensa despreparada para tratar de assunto tão delicado.
Sobre o/a autor/a
Mari Tortato
Mari Tortato, jornalista que deixou de correr atrás da notícia faz um tempinho, aposentou-se e foi morar na praia, acordar cedo e ver o sol se por. E, importante, cuidar de cachorro. Foi repórter a vida inteira, mas já pilotou uma redação de 40 talentos, na Folha de Londrina em Curitiba. Voltou à reportagem como correspondente da Folha de S.Paulo no Paraná. Depois de muitos plantões em feriados e festas de fim de ano, jogou a toalha e foi viver a vida.