Delas não tenho medo

Das bruxas de verdade, essas que têm narigão torto, unhas enormes, chapéus pontudos e, montadas em suas vassouras, espalham sinistras gargalhadas pelos céus, dessas nunca tive medo

Nunca tive medo de bruxas. Quando criança tinha medo de umas mariposas enormes que conhecíamos como bruxas e que, dizia-se, soltavam pozinho venenoso quando batiam as asas. Nunca mais vi mariposas como aquelas – tomara que não tenham sido dizimadas pela monocultura que mudou definitivamente a paisagem daquela região do Céu Azul da minha infância.

Agora, das bruxas de verdade, essas que têm narigão torto, unhas enormes, chapéus pontudos e, montadas em suas vassouras, espalham sinistras gargalhadas pelos céus, dessas nunca tive medo. Até me dava bem com a Maga Patalógica embora, hoje admito, eu estivesse mais para Madame Min – gorducha e atrapalhada!

Mais tarde veio a televisão e com ela vieram A Feiticeira e Jeannie É um Gênio e então foi uma maravilha: passei a ter certeza de que para sempre as coisas aconteceriam exatamente como eu quisesse. Bastaria aprender a entortar um pouquinho a ponta do nariz e pronto, tudo estaria de acordo com a minha vontade.

Ah! A vida era mesmo boa!

Mas não seria sempre assim tão fácil. A coisa começou a complicar no ginásio, quando o livro de História chegou a um capítulo chamado Santa Inquisição. Acho que foi a primeira vez que meu mundo caiu! As bruxas das quais eu não tinha medo não existiam! As bruxas agora eram pessoas que morriam na fogueira porque se recusavam a pensar como aqueles que se achavam o próprio Deus na Terra! Eram vítimas de tortura, e era triste! E a tal Inquisição ainda era santa!

Estudava em colégio católico e acredito que não foi um assunto em que tenhamos nos aprofundado muito. Mas para quem vivia livre feito passarinho, tendo a rua como quintal, descobrir que existia tortura foi um impacto forte demais. Até então, sofrimento mesmo era prego no pé, joelho ralado, espinho na grama…

Os anos de escola – de várias escolas – trouxeram outras histórias, outros livros, novos capítulos. O tempo trouxe novas vivências e o fato é que a rejeição à violência – que começou a brotar naquela aula – virou princípio de vida. Intacto, tantas décadas depois.

Por isso, quando há quase cinco anos um então obscuro deputado federal homenageou um torturador, foi como levar um soco na boca do estômago. E ele o fez em uma sessão da Câmara transmitida ao vivo, acompanhada por uma nação inteira e, a meu ver, sem uma reação à altura das chamadas autoridades constituídas ou mesmo da sociedade, tão confusa naquele momento.

Se alguém tivesse me contado, acho que teria dificuldade em acreditar. Mas não, eu vi! Nós vimos! E por mais estranho e absurdo que pareça, sim, aconteceu. E aconteceu de novo, e de novo, e de novo.

E isso é muito ruim porque a voz que se ergue para homenagear a violência é a mesma que, no mínimo, a incentiva e autoriza. Incentivo que, infelizmente, não tem faltado no Brasil dos últimos anos.

Bons tempos aqueles em que temíamos mariposas e ignorávamos as bruxas – embora em se tratando de boitatá, curupira ou mula sem cabeça a história fosse outra!

Ah se eu tivesse aprendido a torcer a pontinha do nariz! Não tenho a menor dúvida de que todos seríamos felizes para sempre!!

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