A moça que lava calçadas

Diante de tamanha destruição a torneira seca vira só uma pequena parte de mais uma enorme tragédia a assolar o país

Não falha nunca. Você abre a janela numa manhã de sexta-feira e lá está ela lavando as calçadas do prédio. É uma moça bonita, simpática e que parece gostar muito do que faz. Lidar com água, parece, é com ela mesmo.

E dá-lhe água. A vassoura vai e vem num ritmo frenético. E mais um balde, depois outro e mais outro… Finalmente lá vem o rodo empurrando para a rua quase um riacho de água e sabão. E, sim, já que a água corre por ali, lá vai a moça esfregando também um pedaço da calçada portão afora. Quem sabe seja necessário mais um balde para enxaguar…

Da janela pode-se observar a reação de quem passa na rua. Arrisco dizer que ao longo da manhã por ali passam dezenas de pessoas – caminhando e parando no compasso de seus cães. Algumas pessoas desviam das poças que se formam sem demonstrar qualquer reação. Talvez lhes desagrade ver tanta água indo para o ralo e passar como quem não viu nada pode ser só um jeito curitibano de ser.

Outros até arriscam um olhar de reprovação mas passam calados. Talvez levem sua indignação para as redes sociais onde sempre se pode conseguir uma certa repercussão. Ou como se dizia antigamente, dá mais ‘ibope” do que abordar alguém que lava calçadas – e também escadas, hall, salão e garagem.

Não é um prédio muito grande, são apenas seis andares, dez apartamentos e então penso que se alguém da equipe da dra. Márcia Huçulak passar por ali vai gostar do que vê. Afinal, o Protocolo de Curitiba contra o coronavírus (Covid 19) para condomínios e congêneres determina a intensificação da limpeza de pisos e mobiliários. Que, neste caso, estão bem limpinhos…

Agora, se passar por ali alguém preocupado com racionamento ou recursos naturais certamente lhe há de partir o coração ver baldes e baldes de água escorrendo pela calçada.

Mas então o olhar se desloca da rua para os fundos do prédio onde algumas grandes lixeiras explicam porque a moça só usa baldes e não mangueira. São recipientes plásticos simples e baratos utilizados para armazenar a água reutilizada da máquina de lavar de moradores.

Uma mangueira acoplada à lavadora leva água pela janela até o térreo. Um pouco de água sanitária, o pouco tempo de armazenamento e tampas com boa vedação garantem a segurança necessária para evitar proliferação de insetos. São em torno de 600 litros de água que iriam para o ralo com ou sem a limpeza das calçadas.

Observando a rua, as lixeiras enfileiradas e a dança de baldes e vassouras da moça lavando as calçadas penso nas pessoas que estão neste momento cuidando, economizando, reduzindo seu consumo de água.

E me pergunto se o governo não teria outros meios para incentivar a redução do consumo – descontos, pontuação, orientação, lives, folhetos, entrevistas – que fossem um pouco mais do que racionar e pesar a mão na tarifa.

Quem sabe um esforço efetivo para levar as pessoas a abraçar a causa que realmente interessa e que vai muito além das torneiras das nossas casas: o fim do desperdício – de qualquer desperdício; a conservação dos recursos naturais e um mínimo de amor e respeito para com o planeta que nos sustenta!

Por falar em planeta, por estes dias tem entrado pela janela um estranho cheiro de fumaça. Pode ser alguém na redondeza queimando qualquer coisa mas é um cheiro de dar calafrios porque lembra sofrimento, morte, árvores ardendo, bichos correndo desesperados e ecossistemas arrebentados a baciadas.

E diante de tamanha destruição a torneira seca vira só uma pequena parte de mais uma enorme tragédia a assolar o país.

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