Sheiks não jogam batatinha frita 1, 2, 3…

Mais que retrato cruel do capitalismo, Round 6 é exemplar em sua habilidade de dissecar seu estágio atual, o do neoliberalismo brandido, entre outros, pelo ministro Paulo Guedes, aquele que viu seus milhões de dólares se multiplicarem em offshore de paraísos fiscais, enquanto o país voltava ao mapa da fome

“Em um dos episódios de Round 6, “Um mundo justo”, o mestre do jogo, espécie de reality show que expande os limites dos rituais de sofrimento dos big brothers globais, pune com a morte um jogador e um de seus soldados, após descobrir que eles trapaceiam e favorecem um dos participantes.

Em um discurso eloquente e apaixonado, o líder justifica a medida descrevendo a competição como meritocrática, e a si mesmo como um provedor de oportunidades negadas aos jogadores no mundo real, onde sofriam com a desigualdade e a discriminação.

A essas alturas não há mais a necessidade de apresentar, em detalhes, a já não tão nova, mas ainda badaladíssima série sul-coreana da Netflix, uma distopia que se tornou candidata a ser a mais assistida na plataforma de streaming e que, no Brasil, se mantém forte e firme no top 10 desde a sua estreia, há pouco mais de um mês.

A premissa é de uma atualidade e uma crueldade estarrecedoras.

Um grupo de jogadores, que têm em comum pertencerem aos extratos mais empobrecidos da sociedade sul-coreana, desempregados e atolados em dívidas impagáveis, é convidado a participar de uma disputa em seis etapas, os “seis rounds” da tradução ao português brasileiro – no original inglês, a série se chama Squid Game, ou “jogo da lula”, uma brincadeira popular na Coreia do Sul, mas desconhecida por aqui.

Sem perspectivas de mudança, chafurdando, desesperados, na própria desgraça, eles aceitam disputar a série de jogos infantis em que os perdedores são mortalmente eliminados, para deleite de uma elite vip, que aposta na sobrevivência e na morte dos participantes em um ritual sádico e orgíaco.

As alusões ao país de origem são muitas e óbvias.

Embora tenha se transformado, em pouco mais de meio século, em uma das principais economias capitalistas do mundo, o crescimento econômico sul-coreano produziu uma sociedade profundamente desigual. Com uma das mais altas taxas de suicídio do mundo, a Coreia do Sul trata mal principalmente seus idosos, quase metade deles vivendo abaixo da linha de pobreza. Entre os jovens, o desemprego ultrapassa os 20%, além das pressões sofridas por um ultracompetitivo mundo acadêmico.

Os coreanos se queixam, também, dos altos níveis de endividamento, das moradias caras e muitas vezes precárias, e da baixíssima mobilidade social em um país fortemente estratificado – por lá, a expressão “nascer com a colher de ouro” equivale ao nosso “berço de ouro”, e produz os mesmos efeitos. Apesar do discurso meritocrático, a percepção especialmente entre os mais jovens, é de que, quem nasce com a “colher de barro”, terá poucas, pouquíssimas, oportunidades de ascender socialmente.

O capitalismo neoliberal

O ministro da Economia, Paulo Guedes.

Uma realidade que não nos é de todo estranha, porque já apresentada em outro fenômeno midiático, o premiadíssimo Parasita, filme de 2019 dirigido por Bong Joon-ho. Mas um dos segredos, tanto de Round 6 como de Parasita, é sua universalidade. Embora tomem como ponto de partida suas próprias mazelas, não é difícil reconhecermos em ambos um universo que também é o nosso.

Com sua trama distópica, Round 6 eleva essa atmosfera ao absurdo.

Mais que retrato cruel do capitalismo, a série é exemplar em sua habilidade, cirúrgica, de dissecar seu estágio atual, o do neoliberalismo brandido, entre outros, pelo ministro Paulo Guedes, aquele que viu seus milhões de dólares se multiplicarem em offshore de paraísos fiscais, enquanto o país voltava ao mapa da fome e assistia ao macabro espetáculo dos mais de 600 mil mortos, vítimas da pandemia.

Em livro relativamente recente, a cientista política estadunidense Wendy Brown defende que no dispositivo neoliberal, todo indivíduo é “igualmente desigual”. Em um sistema, além de econômico, ideológico, em que somos moldados como “empreendedores de si mesmos”, supostamente livres e autônomos, não há lugar para noções como cidadania ou solidariedade social.

Isolados, desenraizados, desprotegidos e vulneráveis, mas ao mesmo tempo moralmente responsabilizados por suas escolhas, premidos pela necessidade, os indivíduos não dispõem de nada, além de seus corpos precarizados, como moeda de troca na tentativa de garantir sua sobrevivência.

É a inversão paradoxal da liberdade, ainda segundo Brown: o neoliberalismo pretende emancipar os indivíduos de toda forma de regulamentação e solidariedade, para melhor integrá-los aos seus imperativos políticos e econômicos. Atribui, assim, o poder decisório a “unidades fracas e minúsculas”, mas enganosa e ideologicamente representadas como autônomas e empreendedoras. 

Ossos e lixo

Reprodução/Instagram/@heloisa.bolsonaro
Heloísa Bolsonaro publicou uma foto da família vestida com roupas árabes em Dubai. Foto: Instagram de Heloísa Bolsonaro.

Se nos anos de 1990 aprendemos, com Caetano e Gil, que “o Haiti é aqui”, com Round 6 descobrimos, em 2021, que no Brasil de Bolsonaro, a Coreia do Sul, no que o país asiático tem de pior, também. A pandemia escancarou ainda mais nossa miséria e desigualdade, transformando o país em um abatedouro a céu aberto, onde pessoas se alimentam de ossos e disputam sobras no caminhão do lixo.

A luta pela subsistência física a mais precária, dissipou qualquer possibilidade de viver outra vida que não a “vida nua”, outro tempo que não o presente contínuo e interminável. Nas palavras do jornalista Matheus Pichonelli em sua coluna no UOL, “os desejos de expansão foram surrados pela lógica da sobrevivência. Ela encurta e danifica muitas das possibilidades de saída. Exclusão e eliminação tornam-se, assim, palavras-irmãs”.

E não se pode dizer que nossa elite assiste a tudo impassível, porque parte expressiva dela fez do nosso grotesco cotidiano, fonte inesgotável de lucro. Enquanto a fome avança, o número de bilionários, no Brasil, saltou 44% durante a pandemia. Juntos, nossos bilionários aumentaram sua fortuna em aproximadamente US$ 34 bilhões no ano passado – cerca de R$ 180 bilhões.

No mesmo período, o governo brasileiro gastou R$ 167 bilhões com um auxílio emergencial cujo teto foi de módicos R$ 600,00. E não graças a Bolsonaro, que pretendia, inicialmente, que ele não poderia passar de R$ 200,00.

É verdade que não temos, ainda, bilionários ostentando e zombando da miséria alheia em passeios espaciais. Nossos convidados vips têm gostos mais simples, como o desmatamento, o trabalho escravo, o extermínio de negros e indígenas, a proliferação das armas ou o tratamento precoce.

E há os que, na impossibilidade de ir às estrelas, postam fotos vestidos de sheik em Dubai.  

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