Precisamos parar de subestimar Bolsonaro

É hora de assumirmos que nos enganamos com Bolsonaro; parar de subestimá-lo e reconhecer a habilidade com que conduz seu projeto político autoritário, é um passo importante para uma oposição eficiente ao seu governo

A deputada Bia Kicis (PSL/DF) foi indicada, pelo presidente eleito da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP/AL), para presidir a Comissão de Constituição e Justiça, a mais importante da casa. Se aprovada a indicação, Kicis estará à frente de uma comissão que lhe confere, entre suas atribuições, a análise da admissibilidade de pedidos de impeachment, que precisam de parecer favorável da CCJ antes de irem ao plenário.

Não apenas processos de impeachment, aliás. Todas as proposições apresentadas à Câmara passam pelo crivo da CCJ, responsável por avaliar e avalizar sua constitucionalidade e conformidade com o sistema jurídico brasileiro.

Não é pouco poder nas mãos de uma deputada em primeiro mandato, conhecida principalmente por sua fidelidade canina a Bolsonaro e ao bolsonarismo; pela defesa, em maio do ano passado, de uma intervenção militar; pelas posições negacionistas sobre a pandemia; pelo seu envolvimento no inquérito das fake news, que corre no STF; ou o voto contrário ao Fundeb, o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica.

Arthur Lira
Arthur Lira: candidato de Bolsonaro vai presidir a Câmara dos Deputados. Crédito da foto: Agência Câmara.

Mas essa é apenas sua faceta mais, por assim dizer, “pública”, coisas que lemos nas redes sociais e nas mídias periódicas. Aquilo de que não sabemos, ou sabemos pouco, porque parte da sua rotina e atuação parlamentar, não é melhor.

Bia Kicis é uma das principais articuladoras da criação de uma “frente conservadora” no Congresso, tarefa a que se dedica desde sua posse e que ganhou fôlego novo com os acontecimentos dessa semana.

São dela os projetos de lei que instituem a Escola sem Partido (trata-se de texto novo, apresentado ano passado, ainda mais autoritário que o PL arquivado em 2018) e a educação domiciliar – se bem que, depois da pandemia, vai ser difícil encontrar alguém disposto a defender o homeschooling). São dela, também, os PLs que revogam o uso obrigatório de máscaras e que torna a vacina contra a Covid-19 facultativa.

Bia Kicis é uma das principais articuladoras da criação de uma “frente conservadora” no Congresso. Crédito da foto: Agência Câmara.

Além desses, pelas suas mãos passarão projetos de interesse da frente conservadora: o Estatuto do Nascituro (PL 478/07), que empurra para ainda mais longe a possibilidade de descriminalização do aborto; e a redução da maioridade penal (PEC 115/15), discussão praticamente enterrada nos mandatos petistas; além de excrescências como a criminalização da apologia ao comunismo, equiparando-o ao nazismo (PL 4.159/20).

Se falo tanto de Bia Kicis é por um motivo principalmente. Sua condução à presidência da CCJ nos dá uma medida mais precisa da vitória de Bolsonaro, sem precedentes nesses dois anos, com a eleição de Arthur Lira na noite de segunda.

O que me leva ao objeto exposto no título desse texto, mas que os parágrafos iniciais apenas circundaram: perdemos tempo demais subestimando, erroneamente, Bolsonaro. E enquanto o fazíamos, ele sistematicamente investia recursos – no sentido lato da palavra – para ampliar e consolidar sua base de apoio no Congresso.

Bolsonaro é tão visceralmente inculto, que balbucia mesmo quando lê o teleprompter, e Capitão Caverna, personagem das matinês televisivas da minha infância, daria a ele aulas de empatia e sensibilidade. Também é verdade que, deputado medíocre, sempre preferiu as práticas escusas herdadas das milícias e transpostas para o dia a dia parlamentar: uso de apartamento funcional “pra comer gente”, funcionários fantasmas, uso de emendas orçamentárias para manter fiel a base eleitoral.

Para Bolsonaro, a pandemia não passa de uma “gripezinha”. Crédito da foto: arquivo.

Foi em parte por causa desse perfil intelectualmente limitado e de um parlamentar, além de preguiçoso, forjado no baixo clero da Câmara, que passamos os últimos dois anos reproduzindo a versão de um presidente igualmente incompetente. Vou um pouco mais longe: naturalizamos a imagem de um político incapaz, e isso já nos custou, e custará, muito caro. Precisamos parar de subestimar Bolsonaro.

O seu triunfo na eleição à presidência da Câmara – e do Senado – e seus desdobramentos, como a indicação de Bia Kicis ao comando da CCJ, é não apenas o mais recente, mas um bom exemplo da habilidade (e que nada tem a ver com competência técnica e administrativa ou capacidade intelectual) de Bolsonaro.

Até agora, a interpretação corrente é de que ele pagará alto a fatura de tirar do caminho Rodrigo Maia que, a seu modo e muito covardemente, se transformou em uma pequena pedra no seu sapato. Quem conhece o modus operandi do Centrão, sabe que o grupo costuma mesmo cobrar, e cobrar alto, os apoios que vende.

Rodrigo Maia, ex-presidente da Câmara e adversário político de Bolsonaro. Crédito da foto: Agência Câmara.

Mas tenho dúvidas se a palavra “refém”, empregada por alguns analistas políticos, cabe nesse caso. Lula foi refém do MDB, Dilma também. Com todas as críticas que se possa fazer a ambas as gestões, é difícil negar que em não poucas ocasiões, entre o projeto e o programa petistas, e o que pretendia o MDB, havia uma evidente contradição.

Entre Bolsonaro e o Centrão, há uma diferença. O que os une não são apenas interesses imediatos, costurados e mantidos com o já conhecido troca-troca em que o Parlamento entra com os votos, o Executivo com os cargos e a grana. Há, na relação, uma afinidade que, à falta de melhor palavra, chamarei de “ideológica”.

Ou alguém acredita que o Centrão se sente desconfortável com a ideia de golpear a democracia? Ou que Bolsonaro não lançará mão de qualquer recurso disponível para continuar a prover os deputados de sua nova e revigorada base? Justo ele, que condenou milhões à miséria suspendendo o auxílio emergencial, mas liberou R$ 3 bilhões em emendas parlamentares para comprar os votos que elegeram Arthur Lira?

Governo Lula também fez aliança com o Centrão para governar. Crédito da foto: Instituto Lula/arquivo.

O acordo entre governo e Centrão celebra e consolida um projeto construído desde a campanha: Bolsonaro atacou ou aparelhou instituições; fragilizou as oposições; cerceou e constrangeu a imprensa; desqualificou a autonomia e a produção científica, cultural e intelectual; enfraqueceu, no governo, ministros que poderiam ofuscá-lo, e fortaleceu os mais subservientes; nomeou aliados para cargos estratégicos.

Fora do plano institucional, apostou alto no negacionismo de fundo paranoico e conspiracionista; manipulou o ressentimento de camadas da classe média; criou e espalhou mentiras; estimulou movimentos e manifestações golpistas; tratou com indiferença e sarcasmo a violência racial e de gênero; banalizou preconceitos contra minorias; incentivou a hostilidade contra quem quer que o criticasse. 

Com Bolsonaro, nunca fomos tão brasileiros. O governo que ri, gostosamente, de 220 mil mortos, surge tonificado em meio a uma catástrofe sanitária e a débâcle econômica, aprofundada – mas não iniciada – com ela.

Bolsonaro também saiu vitorioso na eleição no Senado, com a vitória de Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Crédito da foto: Jefferson Rudy/Agência Senado.

Fortalecido o suficiente para colocar em marcha as reformas liberais, promessa de campanha às elites empresariais e financistas apenas parcialmente cumprida, e a “agenda dos costumes”, fatura também não inteiramente quitada com os grupos e lideranças reacionárias, notadamente religiosas, que ajudaram a elegê-lo.

E se engana quem acredita tratar-se de pautas específicas, a primeira voltada a garantir o apoio das camadas burguesas e a segunda, a promover a agitação nas bases bolsonaristas. Em que pese as singularidades, o projeto econômico e a agenda dos costumes convergem, se complementam, e atendem principalmente a um único interesse: viabilizar as condições para a escalada autoritária de Bolsonaro.

No começo do mandato, achávamos que era a agenda dos costumes o que importava, e que o discurso neoliberal era retórica vazia; na melhora das hipóteses, não era prioridade. Mais um engano: Bolsonaro precisou da agenda dos costumes para ajudá-lo a criar o ambiente político de um Congresso alinhado, e simpático à ideia de fazer avançar as reformas econômicas.

Davi Alcolumbre, ex-presidente do Senado. Crédito da foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.

Mas também o caminho inverso: se aprovar as medidas liberais, terá apoio suficiente, mesmo de parte da mídia corporativa que hoje, bem ou mal, lhe faz oposição, para avançar, sem travas significativas, a agenda moralista e solapar direitos e liberdades. De quebra, com Arthur Lira na presidência da Câmara e Bia Kicis na da CCJ, se blinda do risco de enfrentar um processo de impeachment.

O horizonte de expectativas mais imediato é 2022. Se chegar lá fortalecido como está, hoje, e sem oposição à altura, Bolsonaro se reelege, mesmo e apesar de entregar um país menor do que recebeu. Se reeleito, é bom nos prepararmos para o muito pior. A tragédia que temos diante de nós, terá sido apenas um pálido ensaio do que nos espera. 


Bolsonarismo e polícia, uma simbiose autoritária

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