Precisamos de uma candidatura de esquerda

Nossas mazelas não se resumem às estatísticas estarrecedoras da pandemia e do caos econômico. Sair do abismo político em que mergulhamos é uma tarefa tão complexa quanto necessária, e as eleições podem ser um espaço para discutirmos alternativas à construção de uma efetiva cultura democrática

O Brasil não é um poema de Eliot, mas é uma terra devastada depois de quase três anos governado por uma quadrilha organizada de milicianos genocidas, responsável por uma tragédia que nos custou mais de 600 mil vidas, vítimas da pandemia, só nos últimos 18 meses.

E podemos acrescentar, às vidas ceifadas pela irresponsabilidade criminosa de Bolsonaro e seus asseclas, outras milhões delas, destruídas pelo desemprego e a fome. Por conta dessa devastação, planejada e sistematicamente executada, nos tornamos também (e mais uma vez) o país das muitas urgências.

Duas, entre tantas, se impõem: derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo. Nenhuma delas é fácil, e as eleições do próximo ano podem servir, apenas, para darmos cabo da primeira.

O ovo que chocou a serpente da versão mais recente do fascismo que, de diferentes maneiras, nunca deixou de nos ameaçar, tem sua própria história. Fenômeno político que ultrapassa o genocida que nos governa, e que sobreviverá a ele, o bolsonarismo deu forma e sentido a um conjunto de afetos que encontraram, nele, expressão.

Se há alguma semelhança entre a nossa experiência coetânea e o fascismo histórico, é o quanto, em certa medida, ambos se descolam dos governos e se espraiam, capilarmente, se infiltrando em instituições, orientando condutas, moldando visões de mundo, se alimentando, fundamentalmente, do ódio e do medo.

Do ódio, do medo e da impossibilidade de toda forma de esperança, alimentada, essa desesperança, seja pelas premências cotidianas – a de não sucumbir à fome, por exemplo –, ou pelo estreitamento dos laços de solidariedade produzido pela mentalidade neoliberal e sua noção sacrificial de cidadania.

Eleições e horizontes de expectativas

Lula fala ao Brasil: entrevista coletiva. Foto: Ricardo Stuckert

Longe de mim, portanto, defender que as eleições que se aproximam terão a força de, sozinhas, colocar abaixo o edifício, razoavelmente enraizado, do bolsonarismo. Mas se, por um lado, compartilho com meus camaradas anarquistas uma saudável desconfiança do processo eleitoral e das formas de representação que ele engendra e sustenta, me afasto deles porque acredito que as eleições podem ser (o condicional aqui é importante) uma oportunidade de renovação, mesmo que parcial, das forças e afeições políticas.

Mas a campanha de 2022 só será um espaço possível para que se vislumbre no horizonte o enfraquecimento do bolsonarismo, se a esquerda for capaz de articular e apresentar uma candidatura, de fato, de esquerda. Sim, sei que um eventual retorno de Lula ao Palácio do Planalto empolga muita gente, que ainda supõe que o ex-presidente pode ser essa força aglutinadora do campo popular e progressista.

Mas mesmo muitos petistas começam a reconhecer, especialmente depois dos recentes flertes com Geraldo Alckmin, que se Lula é capaz de vencer eleitoralmente Bolsonaro – o que, dado nosso atual estado de calamidade, já é muita coisa –, a candidatura petista não tem a pretensão de derrotar o fenômeno político do bolsonarismo.

Os movimentos recentes de Lula indicam claramente isso. A aproximação com Alckmin, cotado para ser seu vice, é apenas o mais recente sintoma de que, no horizonte de expectativas do petismo, está a retomada das políticas de conciliação que marcaram seus governos.

Preocupado em reduzir sua rejeição e ampliar seu espectro de alianças, Lula já se encontrou e conversou com empresários, banqueiros e com alguns dos “golpistas” de 2016. Mas não se tem notícias de uma agenda do petista com os movimentos sociais, por exemplo. Segue a mesma toada sua posição oscilante sobre o impeachment de Bolsonaro, seus acenos a grupos conservadores e sua recusa em tratar de temas considerados “espinhosos” demais.

Construir uma cultura democrática

Mas não se começa a derrotar o bolsonarismo – e isso é o máximo que pode uma eleição –, se aliando e governando com alguns dos principais artífices do bolsonarismo. E não se trata de minimizar as tarefas imediatas que cabem a um próximo governo, como gerar empregos e combater a fome; ou de reivindicar algum tipo de “purismo” e ignorar que a governabilidade depende, em certa medida, de alianças.

No primeiro caso, reconheço que, das candidaturas que se apresentam até agora, é a de Lula a mais capaz de marcar um ponto de inflexão, necessário, em nossa tragédia cotidiana. Mas sustentar uma virada que nos coloque de novo nos trilhos de uma democracia, mesmo a mais formal e institucional, dependerá, e muito, da capacidade e disposição do futuro governo, em investir na politização do nosso espaço público.

Porque nossas mazelas não se resumem às estatísticas estarrecedoras da pandemia e do caos econômico, que condenam milhões a revirarem o lixo para se alimentarem de restos, e a classe média a reclamar do preço da gasolina. Sair do abismo político em que mergulhamos é uma tarefa tão complexa quanto necessária, e a arena eleitoral só será um espaço para discutirmos alternativas para a construção de uma cultura democrática mais efetiva, se tivermos um candidato disposto a tocar nas nossas outras muitas feridas.

A revogação das reformas liberais em áreas que ultrapassam a economia, caso da educação; a taxação de grandes fortunas; a auditoria da dívida pública, já aprovada pelo Congresso Nacional, mas vetada pela ex-presidente Dilma Rousseff; uma mudança nas políticas de segurança pública, com foco no desencarceramento e na desmilitarização das polícias, e a suspensão da legislação punitivista aprovada, parte dela, pelos governos petistas; o investimento efetivo em politicas de promoção da cidadania que não se limitem ao aumento da capacidade de consumo; o combate às muitas formas de preconceito e discriminação; a descriminalização do aborto; e a revisão das políticas de esquecimento, como a malfadada Lei de Anistia, que dificultam o confronto com nosso passado autoritário, são apenas alguns dos temas que precisam ser discutidos como condição para iniciarmos o processo, difícil e traumático, de superação do bolsonarismo.

E as chances de que esses temas serão objeto de um programa petista de governo são irrisórias. Não porque falte disposição a parte da militância petista, mas porque o PT e Lula, hoje, pautam suas escolhas menos pelos desejos e princípios que ainda animam sua militância, e mais pela conveniência das alianças com as quais pretendem governar a partir de janeiro de 2023.

A saída é à esquerda, e ela não pode se contentar no papel de coadjuvante e, em se tratando de Lula e do PT, uma coadjuvante pouco valorizada. Nosso papel hoje não é vencer a eleição, o que sabemos ser improvável. Mas assumirmos que só moveremos as estruturas da aliança entre fascismo e neoliberalismo que hoje nos governa, isso a que chamamos bolsonarismo, com radicalidade e enfrentamento.

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