Uma entrevista do ensaísta Francisco Bosco ao “Estadão”, na semana passada, injetou mais um sopro de vida a dois dos temas preferidos dos chamados “isentões” – um termo pejorativo e equivocado, diga-se de passagem, porque em política, como em quase tudo, não existe isso de ser isento.
Indagado sobre seu papel como intelectual e se considera esse termo desgastado, Bosco delimitou a diferença entre ele, que se apresenta como um intelectual público, e os intelectuais que definiu como “acadêmicos”, ou seja, aqueles que atuam nas Universidades.
E a Universidade, de acordo com ele, sofreu nas últimas décadas um processo de esgotamento porque, entre outras coisas, “concentrou excessivamente uma perspectiva ideológica e política de esquerda”.
Depois de mencionar um “autor de direita”, que fez um levantamento nos bancos de dados do CNPq para constatar a quase inexistência de autores conservadores em dissertações e teses, Bosco completa: “A pessoa que talvez primeiro tenha falado sobre isso, e nem sempre da melhor maneira, foi o Olavo de Carvalho. Embora me custe dizer essa frase, eu a digo frequentemente, sem problema algum: Olavo tinha razão nesse ponto”.
As reações, muitas delas raivosas, à entrevista – e mais particularmente a essa passagem –, levaram o próprio “Estadão” a escrever um editorial onde, a pretexto de defender seu entrevistado, na verdade ataca as Universidades. Cito um trecho: “nossas universidades concentram excessivamente uma perspectiva ideológica e política de esquerda e, mais do que isso, o ambiente acadêmico e intelectual tenta excluir grandes dissensos e reage violentamente a qualquer tentativa de ocupação de espaços por parte de pensadores conservadores”.
Na terça (28), Bosco publicou um vídeo em sua conta no Instagram, onde responde, com elegância, aos seus críticos mais raivosos, basicamente, repetindo o que já está dito na entrevista ao vetusto matutino paulistano.
Um dia antes, Joel Pinheiro da Fonseca, em sua coluna na “Folha”, saiu em defesa de Bosco e aproveitou, também, para dar seu pitaco sobre o ambiente excessivamente intolerante que grassa nos campi. “Um dos jeitos [da Universidade] recuperar a confiança da população é ser capaz de mostrar que em seus quadros há pessoas de variadas ideologias, e que fomenta nos estudantes não o radicalismo da vez, e sim a disposição de pensar por si mesmos, sem as amarras do grupo ou tradição”, disse o liberal que acredita nas virtudes do “bolsonarismo moderado” de um Tarcísio de Freitas.
Ainda a polarização
Sinceramente, não sei o que me cansa mais, se a ladainha sobre a “hegemonia esquerdista” nas Universidades ou o blá-blá-blá sobre polarização, tema que não aparece na entrevista de Francisco Bosco, mas é mencionado en passant no editorial do “Estadão” e explicitamente na coluna de Joel Fonseca.
Nem tão no fundo, a polarização é o recurso usado por dez em dez colunistas que insistem nas falsas equivalências entre a esquerda e a extrema-direita. E fazem isso desde 2018, ano em que o “Estadão” publicou outro editorial, inolvidável, em que afirmava ser “difícil” a escolha entre Fernando Haddad e o chefe da milícia, o fascista Jair Bolsonaro.
À medida que ficava mais e mais claro que a opção por Bolsonaro era, na verdade, a escolha pela barbárie, essa turma decidiu equiparar o bolsonarismo, extremista e autoritário, com o que costuma chamar de “identitarismo”. Como se eventuais e, no mais das vezes, pontuais, excessos de parte da militância negra, feminista e LGBT, fosse de fato comparável às práticas delinquentes e ao projeto criminoso e autoritário de poder de Bolsonaro e seus asseclas.
Em sua coluna de segunda, Joel Pinheiro da Fonseca chega a afirmar que “a sociedade democrática só resiste na medida em que uma massa crítica de cidadãos e instituições não cederem a essa lógica binária, cuja consequência lógica é a guerra civil – se houver semelhança de força entre os polos – ou a ditadura, se um deles for mais forte”.
Alguém poderia lembrar ao herdeiro que quem costuma invadir museus e Universidades, onde agride estudantes e trabalhadores – como foi o caso, recentemente, da invasão da Reitoria por um bando de militantes do MBL –, assassinou oponentes durante a campanha eleitoral de 2022 e tentou um golpe de Estado, felizmente fracassado, foi um dos polos.
O único, aliás, que vem se esmerando em atacar, sem dó nem piedade, e de maneira coordenada, mesmo a democracia liberal e algumas de suas principais instituições, como as eleições, o Poder Judiciário e o Parlamento.
O único, também, que plantou bomba no aeroporto de Brasília e fez da produção e disseminação em massa de mentiras prática política, mesmo em meio à tragédia que se abate sobre o Rio Grande do Sul. Mas mesmo que as evidências teimem em mostrar o contrário, haverá sempre quem veja nisso equivalência de práticas e de forças.
A Universidade não é homogênea
A acusação de que a esquerda fez de refém a Universidade é a prima pobre da lengalenga sobre polarização. Fiz o seguinte comentário no vídeo de Francisco Bosco: “Não consigo entender por que as Humanidades terem uma maioria docente de esquerda incomoda tanto, mas ninguém se incomoda com uma maioria de direita – e não raro, uma direita reacionária e elitista – nos cursos de Sociais Aplicadas, Exatas, Tecnológicas e Saúde, além de uma presença expressiva no Direito”.
Explico melhor. É irritante como essas pretensas análises tomam a Universidade como algo homogêneo. A estratégia discursiva funciona mais ou menos assim: se eu distorcer uma realidade bastante complexa e apresentá-la como se ela fosse simples, e enquadrar meu discurso raso em um conjunto de sentenças apenas aparentemente profundas, talvez ele soe como verdadeiro. Pode dar certo, principalmente se você assina coluna em um grande jornal.
Mas na teoria a prática é outra. A Universidade não se reduz aos cursos de Humanas onde, de fato, há uma maioria de docentes e discentes de esquerda. Nas áreas mencionadas acima, e que são, inclusive, as que abocanham a maior fatia das verbas para pesquisas de órgãos de fomento como CAPES e CNPq, docentes e discentes identificados, em algum grau, com a direita, são maioria.
Não sei exatamente por que isso não é objeto de preocupação ou discussão, mas arrisco um palpite. Colunistas e intelectuais como Bosco e Fonseca parecem acreditar no sofisma de que ideológicos somos apenas nós, de esquerda, os que “se propõem a falar sobre a sociedade”. Nas salas de aula e laboratórios das Sociais Aplicadas, Exatas ou Tecnológicas faz-se ciência. E a ciência, dizem, não é redutível à ideologia.
Em sua diatribe, Fonseca insinua, inclusive, que nós, docentes de Humanas, precisamos mostrar que há “pessoas de variadas ideologias” e que não fomentamos em nossos estudantes “o radicalismo da vez”, mas a “disposição de pensar por si mesmos, sem as amarras do grupo ou tradição”. E que é necessário “convencer a sociedade” de nossas virtudes e de utilidade.
Já escrevi sobre a utilidade e a função prática das Humanidades. Quero aqui insistir em dois pontos: não passa de fantasia – e estou sendo muito generoso – afirmar uma homogeneidade ideológica nos cursos e faculdades de Humanas. Simplesmente porque não existe unidade ideológica na esquerda que é, como a direita, diversa em suas escolhas teóricas, no uso de conceitos e em suas práticas políticas.
E é aviltante sugerir que docentes fomentam nos estudantes “o radicalismo da vez”, uma afirmação que nos acostumamos a ler em colunistas de um antigo jornal curitibano, hoje reduzido a panfleto ideológico da extrema-direita, ou nas diarreias verbais do nada saudoso Olavo de Carvalho, cuja contribuição para a degradação do debate público é sobejamente conhecida. A Universidade não é uma instituição perfeita – estamos, aliás, muito longe disso. Mas nem por isso Olavo tinha razão.