O passado queima

A desigualdade que pauta as políticas patrimoniais as transformou, e os monumentos que são parte integrante delas, em um território de luta material e simbólica permanente, na medida em que grupos e identidades subalternizadas reconhecem as muitas assimetrias nas formas de apropriação e seleção desse patrimônio

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“(…) os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”

Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”

A chama que começou a arder ano passado, em cidades dos Estados Unidos e da Inglaterra, chegou ao Brasil. No sábado, manifestantes atearam fogo no monumento em homenagem a Borba Gato, um dos mais conhecidos integrantes das chamadas bandeiras, expedições responsáveis, nos séculos 16 e 17, pela captura, escravização e morte de milhares de índios e negros.

Ainda se podia sentir o cheiro da fumaça no ar, e as manifestações de apoio, majoritariamente à esquerda, e reprovação, muito mais à direita, mas também entre gente de esquerda, tomou conta dos sites de notícias e das redes sociais.

Entre os que censuraram, mal disfarçando a postura inquisitorial e prescritiva, falou-se muito em “vandalismo”, palavra ela própria tão frequentemente vandalizada por aqueles que a usam. Além do anacronismo intempestivo do gesto e sua tentativa de “apagamento da história”, uma espécie de “acerto de contas” tardio e improdutivo em sua tentativa de, a partir das lentes do presente, eliminar o passado de violência de Borba Gato.

Há muitos problemas nessa argumentação, a começar pela pecha de vandalismo lançada contra os manifestantes.

Ela desconsidera, entre outras coisas, o caráter na maioria das vezes excludente, na seleção e eleição dos monumentos históricos. Erigidos para preservar a memória de alguns poucos, em detrimento do apagamento dos passados de outros tantos, a escolha do patrimônio não é um ato neutro e desinteressado, e nem mesmo se pode dizer que se pauta, sempre, por critérios efetivamente públicos.

Antes de serem um artefato material, monumentos são eventos localizados no tempo e no espaço, são lugares de memória que cumprem funções simbólicas e políticas, e que não se limitam a “fazer lembrar” desinteressadamente o passado.

Saber quais valores ele representa, quais relações estabelece com o pretérito, mas também com o presente, e quais atributos justificam sua existência como monumento histórico – ou seja, de que história ele fala, e para quem? –, são questões quase nunca respondidas. Aliás, são perguntas nem sempre mesmo formuladas.

O mais comum é naturalizarmos sua presença em avenidas, ruas, praças e parques, como se o fato de estarem em lugares públicos os tornasse, automaticamente, um patrimônio comum. Mas isso é falso.

A desigualdade que pauta as políticas patrimoniais as transformou, e os monumentos que são parte integrante delas, em um território de luta material e simbólica permanente, acentuado, esse conflito, na medida em que grupos e identidades subalternizadas reconhecem as muitas assimetrias nas formas de apropriação e seleção desse patrimônio.

A violência física que irrompeu ano passado, lá fora, e no sábado em São Paulo, é uma resposta, não a única nem talvez a melhor, às muitas formas de violência simbólica contidas nos modos de representação e monumentalização do passado, também ele, sempre conflituoso.

A afirmação de que a destruição de estátuas não apaga nem muda a história é temerária, porque, no mínimo, ingênua. Ela parece afirmar o pertencimento do patrimônio a um tempo linear, homogêneo e vazio, e desconsidera que cada monumento articula pelo menos três temporalidades distintas, mas que se sobrepõem e coexistem.

Nele, convivem o passado que ele representa; o passado mais recente, que o escolheu e erigiu como representação de uma memória que se pretendia coletiva; e o presente, que tem não apenas o direito, mas o dever, ético e político, de ressignificá-lo.

Nesse sentido, confrontar um monumento não é um ato de vandalismo ou de apagamento da história.

Antes pelo contrário, trata-se de escolher o passado com o qual pretendemos nos engajar; ou seja, não apenas qual passado, no singular, queremos representar e narrar, mas como desejamos representar e narrar nossos passados, admitindo não apenas a pluralidade dos tempos pretéritos, mas que o modo como o organizamos e representamos, produz efeitos de sentido que impactam nossa percepção do presente e nossas possiblidades de futuro.

No caso especificamente da estátua de Borba Gato, a pergunta que devemos fazer não é apenas se queremos continuar lembrando nosso passado escravista, uma indagação necessária, mas insuficiente.

Mas até quando deixaremos que essa comemoração – que etimologicamente significa, “recordar com o outro” ou, simplesmente, “recordar junto” –, naturalize, junto com a recordação solene e celebrativa, a monumentalização desse passado? Uma interrogação que vale, igualmente, para outras tantas homenagens, muitas vezes dispersas em nomes de bairros, ruas, escolas e mesmo cidades, a episódios e personagens do nosso passado escravista e autoritário.   

Se é verdade, como dizem os que criticam o ato de sábado, acusando-o de vandalismo, que não podemos simplesmente esquecer que fomos (fomos?) racistas, também o é que esse argumento tem servido muitas vezes para, justamente, promover o apaziguamento e a conciliação com esse passado.

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