O insuportável fardo de ser um homem branco

O que muitos não suportam, é perderem parte do privilégio de serem homens brancos. Eles se ressentem de verem sua visão de mundo colocada em xeque por grupos que foram coagidos a aceitarem, como universais, as muitas versões de si mesmo que o Ocidente produziu

O fardo do homem branco voltou a pesar, dessa vez sobre os ombros de Leandro Narloch e Antonio Risério. O primeiro sugeriu, em sua coluna semanal na Folha de 29/9, a partir do livro do segundo, que as “sinhás pretas” complicam “a narrativa de ativistas” negros e “abala a culpa coletiva pela escravidão”.

Entre as respostas a Narloch, que disfarça seu empreendimento revisionista chamando-o de uma história politicamente incorreta, Rogério Galindo publicou, aqui no Plural, texto onde chama seu ex-colega de Universidade de “feitor de escravos mortos” e, não sem uma boa dose de ironia, de “coach do movimento negro”. Além de um covarde que “gosta de bater nos pobres, nos ferrados, nos miseráveis que a vida já deixou no chão”.

Não consigo imaginar definição melhor.

No sábado (2/10), foi a vez do próprio Antonio Risério, na mesma Folha, acusar o que ele chama de “ideologia identitária”, de flertar com o “fantasma do fascismo”. Para Risério, a ameaça fascista não vem das polícias militarizadas, do exército de fundamentalistas cristãos, dos bolsonaristas que saem às ruas pedindo “intervenção militar democrática”, tampouco dos militares que aderiram ao governo, ou dos grupos fascistas e neonazistas simpáticos ao bolsonarismo.

Nem mesmo de Bolsonaro e suas ameaças constantes à democracia, seus rompantes golpistas, seu desprezo pela democracia, pelos direitos e liberdades. Não. Para Antonio Risério, o fascismo que nos ronda e ameaça é resultado da pauta e dos movimentos “identitários”.

Ironicamente ele, que acusa ativistas de fraudulentos, comete fraudes imperdoáveis em seu texto, tratando-se ele de um antropólogo, entre outras, distorcer propositada e perversamente o objeto de sua crítica. De acordo com Risério, ativistas e teóricos “identitários” (que, aliás, ele não cita), resumem a história do Ocidente e do Brasil a uma sequência infindável de violências.

O objetivo final, ainda segundo Risério, é a destruição do Ocidente e de sua “democracia liberal”, mas não sem antes, passarmos por “um intervalo autoritário, que se responsabilizará pela submissão compulsória de todos aos dogmas sagrados do multicultural-identitarismo”.

Parece Olavo de Carvalho; poderia até ser Olavo de Carvalho e ninguém estranharia. Mas quem escreve e assina essa sequência de atrocidades, é um sujeito que se apresenta como poeta e romancista, além de antropólogo.

Há muito em comum entre Narloch e Risério, além de serem, ambos, homens brancos. Nos últimos tempos, se tornou comum tecer críticas aos chamados “novos movimentos sociais”. Não se trata de coincidência; as críticas, no fim das contas, são um sintoma não apenas da visibilidade desses movimentos, mas igualmente da pertinência de sua presença no debate público.

Leandro Narloch. Foto: divulgação.

Nesse sentido, criticá-los, e reconhecer, por exemplo, suas contradições, é não apenas coerente, como necessário. E até onde acompanho e leio a respeito, não são poucos os militantes e teóricos que as reconhecem e exercitam a crítica no interior de um movimento que, como qualquer outro, é bastante plural.

O problema desse exercício de desqualificação travestido de crítica, como os de Leandro Narloch e Antonio Risério, é que ele produz uma caricatura, além de simplista, no mais das vezes, mentirosa. E amparada em reducionismos conceituais que servem como um verniz de legitimidade e autoridade intelectual.

Há vários desses reducionismos em ambos os artigos. Antonio Risério, por exemplo, ao sugerir que a noção de identidade é um atributo apenas de negros, naturaliza a sua própria, a de homem branco, sobre a qual nada fala. Para ele, o “Ocidente” não tem uma história, e a “democracia liberal” é o fim último da política.

Claro, uma coisa e outra estão ameaçadas pela “ideologia identitária”, que insiste em afirmar o contrário: o Ocidente não apenas tem uma história, como ela é, também, marcada pela adversidade e a violência; e a democracia liberal, invenção recente e ela própria imperfeita, não deve ser o estágio final e definitivo da vida política.

A supremacia ocidental, branca e, em várias versões, também masculina e heteronormativa, depende em larga medida de uma versão do passado que, preferencialmente, apaga dele os registros que a contradizem. A indústria do revisionismo e do negacionismo históricos, de que Narloch é parte, é particularmente hábil em produzir narrativas que manipulam evidências ao gosto do freguês. Elas tanto podem, simplesmente, negar determinados acontecimentos pretéritos, como distorcê-los, quando não é possível negá-los, para minimizar seus efeitos perversos no presente.

É o caso das sinhás pretas do século 19, usadas não apenas para relativizar a escravidão, como para livrar a cara do capitalismo e negar a herança perversa que ela nos legou.

Além das motivações e disputas políticas e ideológicas, nomes como Leandro Narloch e Antonio Risério se tornaram porta-vozes de um ressentimento que, não coincidentemente, caminha pari passu à ampliação de direitos às chamadas minorias, assegurados, ao longo dos últimos anos, por políticas públicas e institucionais, como é o caso da política de cotas.

Mas o ressentimento de que falo é expressão, também, de um incômodo mais sutil e de difícil percepção, porque de algum modo generalizado. É o “fardo do homem branco” contemporâneo, obrigado a conviver e dividir um espaço antes apenas seu, com mulheres, LGBTs, negros e sua insistência em tornar o mundo um “lugar mais chato”, reivindicando coisas como respeito e dignidade.

Ou nos lembrando de coisas desagradáveis, como o fato de que a violência doméstica ainda existe, e aumentou na pandemia; que somos um dos países que mais mata sua população LGBT; e que é, principalmente, a população negra aquela que habita as periferias e lota as prisões.

Ressentido, para Nietzsche, é quem alimenta internamente sua impotência em vingar-se de todos que, segundo ele, de alguma forma lhe impuseram prejuízos. Nessa trilha, a psicanalista brasileira Maria Rita Kehl afirma que “ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer”. Pouco importa se esse sofrimento, se o prejuízo imposto, é real ou imaginário.

Nem tão no fundo, o que os Narlochs e Risérios da vida não suportam, é perderem parte do privilégio de serem homens brancos. Eles se ressentem de verem sua visão de mundo, o modo como organizam e narram sua realidade passada e presente, colocada em xeque por grupos que foram, durante muito tempo, coagidos a aceitarem sua inferioridade e sua invisibilidade como sujeitos, ante os discursos que representavam, como universais, as muitas versões de si mesmo que o Ocidente produziu.

E talvez o mais intolerável, para eles, seja saber que, apesar do seu desejo e dos esforços empreendidos, o mundo a que eles aspiram, simplesmente não voltará.

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