O Estado brasileiro é uma cova rasa de CPFs cancelados

No Brasil, as vítimas da violência policial são, em sua maioria, negras. Uma incômoda realidade que permanece estável há décadas, e faceta do genocídio brasileiro que antecede à pandemia

A imagem de Bolsonaro nos bastidores de um programa sobre o “mundo-cão”, cercado de asseclas e sorrindo, debochado, com uma placa onde se lê “CPF cancelado”, é a mais nova “polêmica” envolvendo o genocida que elegeram presidente. A maioria das críticas chamou a atenção para o escândalo de fazer piada com a morte, na semana em que alcançamos 400 mil mortos, vítimas da pandemia.

Não que Bolsonaro seja particularmente solidário com as brasileiras e brasileiros que morreram, ou com os que sobreviveram e lidam com a dor de suas perdas. Mas a “controvérsia” dessa semana tinha endereço certo. Dessa vez, mas só dessa vez, Bolsonaro não fez chacota das vítimas da Covid-19. Mas das que morreram e morrem, diariamente, executadas pela polícia, pelos grupos de extermínio ou pelas milícias.

Mortos que são, em sua esmagadora maioria, negros e, quase invariavelmente, moradores de comunidades empobrecidas, cravadas nas franjas dos centros urbanos país afora. Uma realidade que não é nova, sabemos. Policiais já atuavam nos grupos de extermínio, que mantém um macabro parentesco com as atuais milícias, nos anos de 1970, durante a ditadura militar, período que também consolidou a militarização das nossas polícias.

A expectativa de que a retomada democrática alterasse isso produziu apenas frustração. As instituições policiais (e prisionais), se transformaram em imensos reservatórios da arbitrariedade e da violência cultivadas nas duas décadas de autoritarismo. Cultivo consagrado pela Constituição de 1988, que manteve, em seu artigo 144, a divisão de tarefas entre as polícias Militar e Civil, uma distorção dos modelos que, supostamente, inspiraram a organização policial brasileira.

Estado penal

Marielle Franco. Foto: Renan Olaz/Agência Câmara do Rio de Janeiro.

Nem mesmo os governos progressistas, comandados pelo PT a partir de 2003, foram capazes de reorganizar o aparato policial. Nos anos de Lula e Dilma, ao contrário, recrudesceram as políticas de cunho punitivista e toda uma nova legislação, alargando a função e a intervenção policial do Estado, foi implementada, de que é emblemática a Lei de Drogas, de 2006, além do aumento vertiginoso da população carcerária. 

Um informe da Anistia Internacional sobre O Estado dos Direitos Humanos no Mundo, de 2013, dedicava parte significativa a denunciar o uso recorrente, no Brasil, da violência policial como “política de segurança pública” e resposta das autoridades governamentais à criminalidade. Com o recrudescimento do número de mortos em ações policiais, principalmente depois da experiência das UPPs no Rio de Janeiro, a entidade dedicou um longo relatório ao tema.

Publicado em 2015, sob o título “Você matou meu filho: homicídios cometidos pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro”, o documento não hesita em afirmar que os “autos de resistência”, ao servirem como instrumento que dificulta a apuração rigorosa e transparente das ações policiais, favorecem a impunidade, naturalizam a truculência e corroboram com a narrativa oficial, que invariavelmente estigmatiza e criminaliza a vítima.

Assassinada em 2018, a vereadora carioca Marielle Franco, em sua dissertação de mestrado em Administração Pública, “UPP – a redução da favela a três letras”, defendida na Universidade Federal Fluminense em 2014, identificou na implantação das UPPs, fruto da parceria dos governos petistas com os governadores Sérgio Cabral e Pezão, a continuidade do que estudiosos chamam de “Estado penal”.

Os resultados nefastos desse modelo de segurança pública, que traduz exemplarmente a relação do Estado com as populações subalternizadas, não atinge apenas a população civil. Na dissertação, mas também em intervenções públicas, Marielle pontuava que a violência atingia igualmente policiais, e lembrava que o efetivo militar que atuava nos morros era composto, em sua maioria, por homens negros e pobres.

Um outro genocídio

De um modo ou de outro, as vítimas preferenciais do “Estado penal” brasileiro têm a mesma cor de pele, etnia e origens sociais e geográficas. Somente no ano passado, em plena pandemia, foram 5.660 pessoas assassinadas pela polícia, e 198 policiais mortos, de acordo com dados do Monitor da Violência, parceria do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP.

O mesmo estudo mostra que, aproximadamente, 80% das vítimas da violência policial são negras, uma estatística que permanece inalterada há décadas.

A situação é ainda mais grave com Bolsonaro. Como argumentei em outra coluna, “Bolsonarismo e polícia, uma simbiose autoritária”, parte do projeto de poder do clã passa por aliciar as polícias militares, ampliando e consolidando o apoio do governo, especialmente, entre soldados e oficiais de baixa patente. Não está no horizonte resolver os inúmeros problemas enfrentados pela corporação – salários defasados, péssimas condições de trabalho, quase nenhum treinamento, diminuição do efetivo etc.

Mas, tão somente, reforçar a identificação ideológica com o governo, seja por meio de medidas legislativas – a insistência em aprovar, no Congresso, a ampliação do excludente de ilicitude, por exemplo –, ou gestos políticos como o apoio, em 2020, ao motim da PM do Ceará. A estratégia é aparelhar e transformar as polícias em milícias privadas a serviço do governo.

Se a família Bolsonaro, como mostra o sociólogo Bruno Paes Manso, autor de A República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro, sempre exerceu o papel de representante ideológica das milícias, sua presença à frente do governo, e a autoridade que exerce sobre o aparato repressivo e policial, amplia esse papel e aprofunda seu poder de autorizar, legitimando, as políticas de extermínio sintetizadas na gíria do “CPF cancelado”.

Trata-se de uma faceta do genocídio brasileiro, o da população negra, que antecede à pandemia. E sobreviverá a ela.


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