O coração de Dilma, as coxas de Lula

Há uma aposta no esvaziamento do espaço público e na despolitização. Se política também se faz com afeto, isso pode ser perigoso quando os afetos turvam o debate e pautam a discussão de problemas que são públicos

Em 2010, a campanha de Dilma Rousseff tornou público documento onde a então candidata se comprometia a não descriminalizar o aborto. E para que não restassem dúvidas, afirmou que “eleita presidente da República, não tomarei a iniciativa de propor alterações de pontos que tratem da legislação do aborto e de outros temas concernentes à família”.

O tema do aborto, para quem não lembra, praticamente monopolizou os debates no segundo turno das eleições daquele ano, que Dilma disputou com o tucano José Serra, e o documento foi um meio de defender a então candidata da “campanha de calúnias e boatos espalhados por meus adversários eleitorais”. Não foi o único.

Como uma forma de reforçar seu apreço, e do PT, pelos valores familiares, e manter a aliança com os grupos religiosos, principalmente evangélicos, que já eram da base de apoio dos governos Lula, Dilma foi apresentada como a “mãe do povo”, cuja tarefa não seria tanto governar o país, mas “cuidar” dos brasileiros.

Veio dessa estratégia retórica a expressão “Dilmãe”, ainda hoje usada por simpatizantes da ex-presidente. Diferente de outros compromissos de campanha, esse Dilma fez questão de cumprir. Uma boa mãe, afinal, é pró-vida.

Quatro anos depois, Dilmãe vira também “guerreira”. Em 2014, com outro tucano, Aécio Neves, martelando nos debates e programas eleitorais o passado de Dilma como “terrorista”, a jovem que combateu, corajosamente, a ditadura, surge estilizada em uma imagem que tinge de cores seu passado militante.

As escolhas, os conflitos, as contradições e, reitero, a coragem de quem enfrentou a prisão e a tortura, cabem em um slogan: “coração valente”.

Lula e Rosangela da Silva. Foto: Ricardo Stuckert.

No começo dessa semana, uma foto de Lula com a namorada, Rosangela da Silva, a Janja, de férias em uma praia do Nordeste, sacudiu as redes sociais, graças às coxas do ex-presidente, tonificadas por exercícios diários e, aparentemente, levemente retocadas pelo Photoshop.

A foto é bonita, Lula e Janja parecem apaixonados e felizes. Mas a imagem produziu reações que parecem exageradas, à uma primeira leitura.

À parte os memes, alguns impagáveis, houve quem visse na foto um Lula, além de apaixonado, “em forma para lutar por um país mais justo”. Outros, “a imagem da virilidade, de poder (…) de alguém pronto para enfrentar os desafios da presidência, em contraponto à imagem doente, apodrecida, decadente de Bolsonaro”. E enfim, houve mesmo quem acreditasse que a foto “deu o tom de como [Lula] enfrentará o fascismo, com potência e galhofa em doses medidas”.

Um espaço público esvaziado

Mas o exagero, como disse, é apenar aparente. Eles revelam, uma vez mais, um comportamento que tem se tornado incomodamente comum em parte expressiva da esquerda brasileira, notadamente – embora não apenas – a esquerda petista. Comum e longevo, e por isso iniciei esse texto relembrando as campanhas de 2010 e 2014, e o “coração valente” da “Dilmãe”.

É como se essa esquerda, cada vez mais, apostasse no esvaziamento do espaço e do debate público, e na despolitização da política; e não apenas como retórica eleitoral, mas como estratégia de governo. Se política também se faz com afeto, por outro lado pode ser perigoso quando os afetos turvam o debate político e pautam a discussão e o enfrentamento de dilemas e problemas que são públicos e, por isso, políticos.

No já clássico Raízes do Brasil, o historiador Sérgio Buarque de Holanda forjou a categoria de “homem cordial”, um tipo ideal weberiano por meio do qual pretendeu explicar aspectos da sociedade brasileira. Em linhas gerais, a cordialidade, segundo Sérgio Buarque, sintetiza nossa distância e indiferença em relação aos ritos que caracterizam a vida pública.

Sérgio Buarque de Holanda. Foto: reprodução.

No Brasil, a ausência de uma distinção clara entre as esferas pública e privada, suas funções e significados, constitui-se na contramão dos valores liberais que estão no cerne das democracias modernas.

Historicamente, por aqui foi a “vida privada” quem forneceu o modelo no interior do qual foram forjadas nossas composições sociais. E não há nada de positivo nisso, ainda de acordo com o pai do Chico: fundada nos laços e arranjos familiares, a cordialidade se estendeu até o espaço público que, precarizado, se viu subordinado a interesses privados e domésticos. O custo ético e político dessa subordinação é altíssimo.

No mundo moderno a palavra “público” não designa apenas “uma região da vida social localizada em separado do âmbito da família e dos amigos íntimos”, de acordo com o sociólogo Richard Sennett. Mas também a possibilidade de convivermos com uma diversidade significativa de pessoas pertencentes a classes, gêneros, etnias, religiões, hábitos, etc…, distintos dos nossos e daqueles que nos são íntimos e familiares.

Ao abolirmos a distância, sempre simbólica, obviamente, entre as esferas privada e pública, fragilizamos nossa capacidade de conviver com outro e passamos a tratar os assuntos e problemas públicos como se fossem, ainda nas palavras de Sennett, “questões de personalidade”.

O passado como utopia

E o que exatamente o coração de mãe de Dilma e as coxas do Lula têm a ver com isso? Muita coisa. Em uma sociedade dilacerada pela brutalidade de um governo fascista e genocida, comandado por um delinquente que zomba de quase 600 mil mortos, ataca direitos e liberdades e ameaça cotidianamente a democracia, precisávamos de uma esquerda capaz de sensibilizar seus eleitores para a importância de revitalizarmos o espaço público e o debate político.

Que foi, em larga medida, o que faltou aos governos petistas. Há exemplos mais ou menos claros disso.

Enquanto negociavam com deus, o diabo e o MDB o que consideravam necessário para garantir a governabilidade, os governos petistas se afastaram dos movimentos sociais, contribuindo muitas vezes, inclusive, para sua desqualificação e criminalização.

A capitulação diante da pressão de segmentos religiosos fundamentalistas e as alianças com setores conservadores, como no tema do aborto e na proibição da campanha de combate à homofobia nas escolas, por exemplo, ajuda também a entender a indiferença para com temas e políticas que deveriam ser fundamentais a governos de centro-esquerda.

Jair Bolsonaro mostra uma caixa do remédio Hidroxicloroquina Foto: Carolina Antunes/PR.

Além disso, ao valer-se da estabilidade econômica e de políticas distributivas que permitiram elevar os padrões de consumo de parcelas significativas da população, sem criar mecanismos institucionais que facilitassem e promovessem uma participação democrática mais ampla e direta, o social-desenvolvimentismo dos governos petistas diluiu a cidadania nos índices de diminuição da pobreza, e freou seu amadurecimento.

Não me incomoda a felicidade de Lula, mas o quanto a imagem viralizada dessa felicidade sinaliza que, apesar de uma década a separar suas coxas bombadas do coração materno e valente de Dilma, estamos a lidar com dilemas muito parecidos.

Não por acaso, na incapacidade de vislumbrar horizontes de expectativas que apontem à possibilidade de superarmos nossa tragédia presente, todo o discurso petista nos oferece um passado que não é experiência, mas utopia. Como se bastasse a derrota de Bolsonaro para recuperarmos a felicidade perdida. Mas isso é mentira.

Vencer eleitoralmente Bolsonaro no próximo ano, é apenas o primeiro passo de um percurso difícil e traumático, que é superarmos e derrotarmos o bolsonarismo. Não para voltarmos a 2002, esse ano mágico do petismo. Mas para começarmos a construir, de novo, esse pouco de democracia que havíamos conquistado, mas que foi destruída pela quadrilha de militares e milicianos, e de militares-milicianos, que nos governa.

E para isso, precisaremos conjugar a política em outros termos que não aqueles que a reduzem a mera extensão da vida, de costumes, hábitos ou valores íntimos e pessoais, reincidindo nos erros que colaboraram para fragilizar nossa disposição e capacidade de mobilização e enfrentamento, esvaziando espaços de participação, individualizando e moralizando o debate público. Uma de minhas bandas preferidas dos anos de 1980, Picassos Falsos, cantava que “Não é o sol do verão que vai mudar esse mau tempo”. Nem mesmo o sol do Ceará.

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