Nossa segunda onda é a continuidade do negacionismo

Fizemos principalmente duas coisas ao longo desse ano pandêmico: contabilizamos cadáveres – pouco mais de 188 mil quando escrevo esse texto – e assistimos, impotentes, o governo tratar com indiferença criminosa o avanço da pandemia. E não se trata de incompetência, mas de uma vontade deliberada de boicotar mesmo as mais comezinhas medidas de prevenção.

O protagonismo de Bolsonaro nesse processo é inegável.

Ele convocou, estimulou e participou de manifestações; demitiu dois ministros da Saúde e nomeou como interino um militar subserviente e negacionista; espalhou mentiras, inclusive sobre a decisão do ST que conferiu autonomia a governadores na prevenção à pandemia; financiou, com recursos públicos, a produção e incentivou o uso de cloroquina; disseminou fake news e teorias da conspiração e, mais recentemente, nos brindou com piadinhas homofóbicas, relacionando o medo da contaminação pelo coronavírus ao fato de sermos um país de “maricas”.

Um dos argumentos brandidos pelo presidente nesses nove meses, é o da necessidade de voltar à “normalidade”. Mas para a surpresa de muitos, na proporção em que a possibilidade de vacinação se torna mais próxima, Bolsonaro e os bolsonaristas decidiram investir sua fúria justamente contra a única medida, nesse momento, que pode nos aproximar de qualquer coisa que possamos chamar de “normalidade”.

Enquanto em alguns países a vacina já está a ser aplicada, e em inúmeros outros há um cronograma que prevê o início para as próximas semanas, no Brasil o plano de vacinação apresentado pelo Ministério da Saúde é tão consistente como o programa de governo apresentado pelo candidato Bolsonaro em 2018.

Pessoalmente, Bolsonaro tem tratado o assunto com a irresponsabilidade habitual. O resultado é uma segunda onda de negacionismo, ainda mais grave que a primeira, com muita gente brincando de sociopata ao exercer sua liberdade de colocar em risco a saúde e a vida dos outros. E isso, insisto, quando, graças à possibilidade da vacina, estamos o mais próximo possível daquilo que o presidente e seus cúmplices vêm reivindicando há meses, que é a retomada da “normalidade”.

Em sua coluna na revista Cult desse mês, o jornalista e professor da UFBA, Wilson Gomes, defende que o bolsonarismo é, tanto quanto um fenômeno político, um movimento hiperidentitário. Isso explica, de acordo com ele, a coesão em torno a temas mesmo os mais urgentes, como é o caso da vacinação.

A rejeição à vacina nada tem de incoerente, porque parte de uma performance que reforça, a um só tempo, a distinção e a singularidade do grupo, e a disposição a combater, como em uma cruzada, os muitos inimigos que inventa pelo caminho. Mas nada disso existe isoladamente, e sim como parte da postura histriônica de quem está em permanente luta contra um inimigo maior e mais poderoso, o sistema.

Dentro do sistema, contra o sistema

Marca do bolsonarismo desde a campanha, o discurso antissistêmico se tornou ainda mais incoerente com a eleição de Bolsonaro.

Como comentou o também historiador Murilo Cleto em seu perfil no Facebook, o “bolsonarismo está há dois anos tentando convencer a si mesmo e aos demais que, mesmo tomando conta de um orçamento de R$ 3,6 trilhões e ocupando mais de 30 mil cargos no executivo federal, está na oposição ao que seria o verdadeiro poder representado pelo sistema: organizou protestos, fez campanhas contra os outros poderes, pediu golpe, etc”.

A oposição à vacinação é, nesse sentido, parte da postura que o grupo alimentou durante toda a pandemia em relação, por exemplo, às medidas de isolamento, o uso de máscaras e em muitos momentos, ao próprio coronavírus. Mas, o mais importante, o bolsonarismo elegeu a vacina como representante do sistema que é preciso combater, porque representação de um inimigo oculto que age por meio dela, ameaçando sua integridade.

Bolsonaro precisa disso, e não por acaso estimula o negacionismo paranoico de seus seguidores, mesmo que isso custe outras tantas milhares de vidas e atrase ainda mais nossa recuperação, inclusive econômica. Bolsonaro precisa disso porque seu projeto autoritário de poder se sustenta no caos, e poucos meios são mais eficientes para mantê-lo que o medo.

O medo e o caos que ele alimenta cumprem, nesse projeto, dois papeis fundamentais.

Eles desresponsabilizam Bolsonaro de fazer aquilo para o que foi eleito, governar; e reforçam a unidade identitária do grupo em torno ao líder, o único apto e habilitado a conduzir seus seguidores, oferecendo-lhes ao mesmo tempo um inimigo a odiar e temer, e as condições para o combater e derrotá-lo.

Em artigo publicado, ano passado, no blog “Entendendo Bolsonaro”, do UOL, disse que uma das características de Bolsonaro é que ele conjuga elementos do fascismo histórico, tais como o personalismo e a fabricação do inimigo, por exemplo, a formas de autoritarismo cultivadas no terreno fértil de nossa história. O modo como manipula politicamente a tragédia da pandemia e menospreza nossas chances com a vacinação, é mais um indicativo de que estamos à mercê das vontades de um fascista.

Não esqueçamos que, historicamente, a ordem autoritária do fascismo brotou, também, do medo e do caos.

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