No país de Bolsonaro, é proibido morrer

Vidas não importam: desde que os efeitos esperados sejam atingidos, toda estratégia é válida, mesmo a mais mentirosa. Mesmo colocar em dúvida a morte de milhares de brasileiras e brasileiros

O governo Bolsonaro mente. E enquanto mente, mata. E escarnece de quem morreu.

O último escárnio presidencial foi a declaração, na segunda (7), de que cerca de 50% dos óbitos atribuídos à Covid-19 em 2020 não foram causados pelo vírus, informação, segundo Bolsonaro, do Tribunal de Contas da União, que no mesmo dia o desmentiu. A história toda é tétrica, uma fraude com indícios de premeditação e níveis de obscenidade assombrosos, mesmo para os padrões já tão baixos da quadrilha governamental.

O que sabemos até aqui é que um auditor, Alexandre Figueira Costa Silva Marques, inseriu no sistema do Tribunal um documento, pessoal e não chancelado pelo TCU, onde alega, sem evidências, que governadores supernotificaram os casos de Covid no ano passado, para justificarem o recebimento de recursos, principalmente.

A família de Silva Marques é próxima a Bolsonaro; o pai é amigo do presidente e o próprio auditor chegou a ser indicado, em 2019, para uma diretoria do BNDES. Por enquanto, ele está afastado do TCU, responderá inquérito administrativo e já teve sua convocação aprovada pela CPI da Covid no Senado.

Independentemente dos desdobramentos institucionais, a mentira de Bolsonaro já ganhou vida própria e segue o rumo esperado. Na segunda mesmo, o portal R7, da IURD de Edir Macedo, alinhado ao governo, divulgou a informação, que permanece disponível mesmo após o desmentido do TCU. Embora tenha, supostamente, admitido o erro, o próprio presidente reincide na mentira.

Na terça (8), a apoiadores, disse existirem “indícios fortíssimos” de irregularidades na notificação dos óbitos por Covid, segundo “mensagens que circulam no WhatsApp”, e que a CGU vai apurar as denúncias. Ontem (9), voltou à carga: a seguidores na frente do Palácio do Planalto, afirmou que “no meu entendimento, sim, tivemos supernotificações no Brasil”, e que, “segundo os estudos ali, a supernotificação pode chegar a 45%”.

Mais tarde, em um culto evangélico em Anápolis, Goiânia, além de colocar em dúvida a eficácia da vacina e reforçar a propaganda do “tratamento precoce”, reiterou que os números de mortos pela Covid foram fraudados, para que governadores e prefeitos pudessem obter mais recursos de Brasília, e justificarem ações como o uso de máscaras e o lockdown – medida extrema, raras vezes adotada na pandemia.

A mentira como estratégia política

Um dos nossos muitos problemas desde o começo da pandemia, sabemos, não é a super, mas a subnotificação. Estudo publicado nos Cadernos de Saúde Pública por pesquisadores da Fiocruz, em fevereiro deste ano, ao levar em conta, entre outros indicadores, diferenças socioeconômicas e características demográficas por região, concluiu pela existência de um índice significativo – em média, cerca de 45% – de mortes excedentes não explicadas e de óbitos fora do hospital ao longo do último ano.

Os resultados da pesquisa convergem com os números do Instituto de Métricas de Saúde e Avaliação, da Universidade de Washington, segundo o qual o total estimado de mortes no Brasil é até 30% maior que os dados oficiais. De acordo com as projeções do IHME (sigla em inglês), o número de mortos, no Brasil, já é de quase 630 mil, enquanto as informações de ontem (9) davam conta que chegamos aos já assustadores 480 mil óbitos.

Absolutamente nada disso interessa a Bolsonaro e aos bolsonaristas.

Como em outros eventos, qualquer noção de verdade tem uma importância cada vez mais secundária. Tem sido assim com a cloroquina, a ivermectina e a panaceia do tratamento precoce. Nos ataques que desferiu à OMS e à China. Também desde o ano passado, Bolsonaro e seus cúmplices insistem na mentira de que o governo federal teve sua autoridade cerceada por decisão do STF, que conferiu poderes a estados e municípios no combate à pandemia. Tudo mentira.

Além de requentar velhos embustes, com a instalação da CPI o governo criou novas mentiras. A supernotificação é a mais recente. Desde segunda (7), as redes e a militância bolsonaristas turbinaram a informação, percorrendo um caminho já conhecido: a impostura começa no presidente, é reproduzida por seus aliados mais próximos – incluindo parlamentares e assessores diretos –, vira “notícia” em sites e blogs obscuros e, finalmente, circula, veloz e furiosamente, em mídias e redes sociais.

Na prática, isso implica a indiferença com as milhares de mortes e as outras que se somarão a elas. Desde que os efeitos esperados sejam atingidos, vidas não importam a Bolsonaro; o que o preocupa e do que se ocupa, é seu projeto pessoal, político e autoritário de poder. E para isso, a mobilização das suas redes de apoio é fundamental, e ela depende, em larga medida, de desacreditar tudo e todos identificados com o “sistema”.

E se o “sistema”, hoje, são os quase 500 mil mortos pela Covid – e contando –, então será preciso escarnecer deles e do sofrimento dos que ficaram. Na estratégia bolsonarista, não há dignidade nem mesmo para os cadáveres acumulados pela irresponsabilidade criminosa do governo. Se os mortos se transformarem em um obstáculo às pretensões políticas do presidente e seu grupo, que eles morram uma segunda vez.


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