Negar e celebrar o passado autoritário destrói nossas possibilidades de futuro

Se a elaboração do passado, e particularmente dos passados traumáticos, pressupõe a eliminação das condições que o permitiram, a anistia concedida pela ditadura criou as condições que seguem autorizando a indiferença para a desigualdade, a violência e o terrorismo de Estado

Em um de seus primeiros atos à frente do Ministério da Defesa, o general Braga Netto fez publicar a “Ordem do Dia alusiva ao 31 de março de 1964”. Nela se lê que o golpe – no texto tratado como movimento – pacificou o país e garantiu as “liberdades democráticas que hoje desfrutamos”, frente às forças que ameaçavam a “paz e a democracia” brasileiras.

A ordem desse ano retoma, em linhas gerais, a de 2020, assinada pelo então ministro Fernando Azevedo e Silva. Considerado um militar “moderado”, Azevedo e Silva mandou às favas a moderação ao enfatizar que o “movimento de 1964 é um março para a democracia brasileira”. A perpassá-las, a afirmação de um negacionismo histórico que vem ganhando força nos discursos e narrativas, e não apenas oficiais, sobre a ditadura civil militar brasileira.

Não é, obviamente, mera coincidência. Embora nunca tenha feito muito pelos militares em seus quase 30 anos como deputado, Bolsonaro foi bastante hábil em mobilizar e organizar um circuito de afetos baseados principalmente no esquecimento das violências passadas a informar a indiferença cotidiana para com as violências presentes.

Jair Bolsonaro. Crédito da foto: Marcelo Camargo/ABr.

Sua ascensão meteórica à Presidência, não casualmente, ganhou impulso depois de seu voto pela abertura do processo contra Dilma Rousseff, quando prestou homenagens ao coronel Brilhante Ustra, responsável por estuprar, torturar e assassinar, nos porões do DOI-CODI em São Paulo, opositores da ditadura. São igualmente conhecidas suas menções elogiosas a ditadores de países vizinhos, como o paraguaio Alfredo Stroessner – um pedófilo – e o chileno Augusto Pinochet.

Juntas, as ditaduras da América do Sul mataram aproximadamente 40 mil pessoas, entre outras inúmeras atrocidades, aí inclusas crianças sendo presas, torturadas, obrigadas a assistir o sofrimento de seus pais e mães, ou sequestradas e adotadas por famílias simpáticas aos governos. Mas se nos vizinhos sua memória desperta repúdio, aqui um presidente eleito pelo voto direto, coisa proibida nos anos de chumbo, desqualifica e fragiliza, aberta e propositadamente, o pouco de democracia que construímos.

O crescimento da liderança de Bolsonaro, que de uma excrescência política chegou à presidência da República, se explica em parte por nossa adesão aos afetos autoritários. No caso brasileiro, esses afetos se alimentam em uma política sistemática de esquecimento, que vigora desde a “abertura lenta, gradual e segura” de Ernesto Geisel, na segunda metade dos anos de 1970, e que estabeleceu o marco no interior do qual faríamos a passagem para a democracia.

Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

A Lei de Anistia, de 1979, desempenhou nesse processo papel singular. Se na Argentina e no Uruguai, por exemplo, as respectivas legislações que anistiavam os crimes das ditaduras foram derrogadas, no Brasil não: somos o único país que perdoou os ditadores e seus asseclas sem exigir deles o reconhecimento dos seus crimes. Entre outras coisas, esse ordenamento jurídico limita a própria ação do Estado no cumprimento de suas obrigações em casos de violações dos direitos humanos.

Mesmo a Comissão Nacional da Verdade não mudou substancialmente isso, porque o fundamental restou por fazer: nenhum dos governos eleitos a partir de 1989 enfrentou o imenso edifício de olvido sobre o qual se estrutura parte de nossa cultura política contemporânea.

No último livro publicado ainda em vida, A Memória, a História, o Esquecimento, o filósofo francês Paul Ricoeur contrapõe ao que considera as dimensões positivas do esquecimento, seus efeitos potencialmente danosos como gesto forçado de apagamento da lembrança, o que ele denomina de “memória impedida”. É esse impedimento que fundamenta as políticas que, como a nossa, confundem anistia com amnésia e tomam essa como critério para associar aquela ao perdão.

Dilma Rousseff sendo julgada durante a ditadura militar.

O equívoco não é apenas semântico – anistia não significa necessariamente perdão nem, tampouco, esquecimento –, mas político. Desde a transição para a Nova República, há uma interdição, um silenciamento a impedir que tratemos a Lei de Anistia e as políticas daí derivadas pelo que elas são: um obstáculo à efetivação de uma cultura democrática sensível, entre outras coisas, aos muitos riscos a que está exposta, e aos restos de uma ditadura que, mesmo institucionalmente, continuam a ameaçá-la.

Se a elaboração do passado, e particularmente dos passados considerados traumáticos, pressupõe a eliminação das condições que o permitiram, a anistia concedida pela ditadura criou as circunstâncias que seguem autorizando a indiferença para com a desigualdade, a violência de gênero, o racismo e, mesmo, a indiferença para com o terrorismo de Estado, ativo principalmente nas periferias e prisões.

Mas não menos importante. O negacionismo, que não é um dado, um déficit meramente cognitivo, mas um vetor político fundamental aos projetos autoritários do atual governo, enseja a produção de sentidos que distorcem o passado, com repercussões perversas no presente e na nossa capacidade de imaginarmos outro futuro que não aquele que recebemos como herança da ditadura.


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