Centenas de pessoas lotaram na noite desta quinta-feira, 19 de setembro, o auditório da Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, e um outro tanto acompanhou no lado de fora, o ato chamado por entidades sociais em defesa do mandato do deputado federal Glauber Braga, do PSOL carioca.
No último dia 11 a Comissão de Ética da Câmara dos Deputados aprovou a abertura de processo contra o parlamentar por “quebra de decoro”, o que pode culminar com a sua cassação. A representação contra Glauber foi impetrada pelos bolsonaristas do Partido Novo, com o apoio de outros partidos e parlamentares de extrema-direita.
Oficialmente, Glauber corre o risco de ser cassado por ter, em abril desse ano, expulsado das dependências da Câmara um militante do MBL, Gabriel Costenaro, que o insultou e à sua mãe, na ocasião bastante enferma e que faleceria poucos dias depois.
Costenaro é um provocador profissional que percorre o país sabe-se lá com quais recursos – o MBL, afinal, não preza pela transparência da sua contabilidade –, reproduzindo a tática do achaque, do insulto e da agressão pela qual a entidade, basicamente uma milícia protofascista, é largamente conhecida.
As leitoras e leitores do Plural lembram dele. Há pouco mais de um ano, Gabriel Costenaro e outros dois militantes, João Bettega e Matheus Faustino, invadiram um dos prédios da reitoria da UFPR e passaram a filmar, ilegalmente, estudantes da Universidade. Além da confusão costumeira, agrediram uma aluna e uma trabalhadora terceirizada, que levou um soco no estômago de um deles.
Mas disse “oficialmente” porque a altercação com Costenaro é, de fato, apenas um pretexto. O processo contra Glauber e sua eventual cassação interessa a muita gente, particularmente ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, do PP alagoano, e uma das principais – se não a principal – lideranças do chamado Centrão.
Oposição a Lira e à extrema-direita
Braga é, hoje, uma das mais importantes vozes de oposição a Lira, que usa a cadeira e o poder da presidência da casa para achacar e perseguir desafetos, além de manipular e dispor de recursos do orçamento – dinheiro público, portanto – para atender seus interesses pessoais e projetos políticos.
Pouca gente na Câmara se opõe ao autoritarismo de Lira e denuncia suas ilegalidades e esquemas criminosos; e ninguém com a veemência e a coragem de Glauber Braga. Mas essa é apenas uma das razões para preservar o mandato de Glauber.
Glauber é um parlamentar combativo, uma voz de esquerda em um Parlamento dominado por bíblias, bois, balas e demais extremistas de direita, incluindo supremacistas brancos. Um deputado comprometido com a defesa de trabalhadores, movimentos sociais e minorias, em um parlamento apinhado de histriônicos golpistas que topam tudo para defender interesses de bilionários, além dos seus próprios.
Mas seu mandato está sob ameaça de cassação para satisfazer a sanha persecutória do Centrão e da extrema-direita e, vergonhosamente, parte expressiva da esquerda, incluindo o governo e deputados de sua base, assistem a tudo impassíveis e coniventes.
O governo tem deputados da base aliada na Comissão de Ética. Nenhum deles levantou a voz para denunciar a perseguição movida contra Glauber, que pode contar com o voto de seu correligionário, Chico Alencar, e de um e apenas um dos três deputados do PT que a compõem, Jilmar Tatto, de São Paulo.
A esquerda mais abertamente governista, abandonou Glauber. Olhando aqui de fora, parece mesmo que alguns de seus correligionários o abandonaram, sob o pretexto de estarem lutando em outras frentes, as eleições municipais. Não menos importante, o governo abandonou Glauber, temo, usando seu mandato como moeda de troca na tentativa de apaziguar os ânimos com o Centrão e, claro, com Arthur Lira.
Enfrentamento e conciliação
Sim, o ato na ABI é uma peça de uma forte mobilização em defesa de Glauber Braga. Mas – e eu gostaria muito de estar enganado sobre isso – tenho dúvidas se mobilizações, declarações de apoio de artistas e abaixo assinados são suficientes para reverter uma situação em que o mandato do deputado psolista é a parte mais vulnerável.
Não é difícil imaginar as objeções: “então você gostaria que o governo Lula sacrificasse a governabilidade para defender o mandato de um deputado rebelde?”. Bom, se a tal governabilidade, para ser preservada, depende de um mandato, é porque ela já é frágil e não seria a defesa de Glauber que a inviabilizaria.
Mas isso nem é o mais importante. Enquanto parte da esquerda está cada vez mais limitada ao seu papel institucional, confortável com as coalizões e os acordos de conciliação firmados em nome da governabilidade, Glauber é um dos poucos que insiste em nos lembrar que uma política de esquerda se faz, também, com enfrentamento.
Enfrentamento ainda mais necessário em um momento em que a oposição a um governo progressista, não vem de uma direita limpinha, cheirosa e liberal, mas da extrema-direita raivosa, autoritária e golpista. E que ameaça queimar o país – literalmente, inclusive – se esse for o preço a pagar para fazer valer seu projeto de poder.
Em outras palavras, o enfrentamento à aliança entre fascismo e neoliberalismo não se faz apenas com acordos e conchavos de gabinete. Principalmente, não se enfrenta a extrema-direita sacrificando um dos deputados que mais aguerrida e corajosamente a combate.
Nos governos anteriores, a tentativa de conciliar interesses e demandas contraditórias, quando não antagônicas, produziu uma espécie de ornitorrinco, imagem emblemática a que recorreu o sociólogo Francisco de Oliveira para definir as muitas contradições do Brasil contemporâneo. A justificativa das gestões petistas é de que essas alianças eram necessárias para assegurar e ampliar os direitos das chamadas “minorias”.
Frente ampla e democrática
O discurso petista não estava errado. Por outro lado, as políticas de inclusão caminharam pari passu com a presença e o protagonismo cada vez maiores de grupos conservadores no debate político, inclusive com lideranças evangélicas ocupando cargos no governo. Alguns resultados dessa miscelânea ideológica foram, sabemos hoje, desastrosos.
A impressão é que estamos assistindo a base de apoio parlamentar, construída à base de troca de favores e distribuição de cargos, com o sacrifício de lideranças progressistas e o enfraquecimento dos movimentos sociais, chantagear abertamente o governo, que não reage e trabalha para não aumentar a crise até o limite do insuportável.
Nesse caso, nada garante o apoio do Centrão e de Arthur Lira, tampouco a incensada governabilidade. Aliás, a experiência recente, mostrou que não.
Glauber está no Parlamento para nos lembrar que um governo de esquerda não se constrói apenas a base da conciliação. E que Lula foi eleito por uma frente ampla que incluía, além de partidos de centro, partidos de esquerda e os movimentos populares e sociais. É esse segmento da frente ampla, cada vez mais espremido e menos ouvido, que talvez espere do governo a coragem do enfrentamento, sempre e quando ele é necessário.
O processo e a perseguição contra Glauber Braga são, nesse sentido, emblemáticos. Se abandonar o deputado do PSOL à própria sorte, como tem feito até agora, o governo Lula deixará que um dos mais combatentes e coerentes parlamentares de esquerda seja sacrificado para satisfazer um grupelho miliciano de extrema-direita, o MBL, e a sede de poder de Arthur Lira e do Centrão, que seguirá governando sem ser governo.
Difícil imaginar um cenário institucional mais lamentável: um governo progressista, de centro-esquerda, eleito pelo voto popular por um conjunto de eleitores que delegou a ele a tarefa de governar, mas, também, de enfrentar a ameaça autoritária e antidemocrática do bolsonarismo, escolhe sucumbir à vontade e as pressões da extrema-direita e do clientelismo delinquente que grassa no Congresso. Uma cadeirada perturbaria menos.