É do presente, sobretudo, que “Marighella” tira sua força

Em “Marighella” se fala da fome, do racismo e do machismo; da violência policial e da corrupção; das prisões lotadas e dos trabalhadores explorados; do entreguismo e das políticas de conciliação que atravessam nossa história política, passada e presente, sempre em benefício das elites

Finalmente estreou nas salas de cinema Marighella, mais que uma cinebiografia, um tributo a Carlos Marighella – “baiano, neto de escravos sudaneses, poeta, deputado, autor reconhecido, torcedor do Vitória e, de acordo com a ditadura, inimigo número 1 do Brasil”, nos informa o filme, logo na abertura.

No papel título, Seu Jorge, em uma interpretação – a leitora e o leitor me perdoarão o clichê – magistral.

Em sua estreia como diretor, Wagner Moura e o roteirista Felipe Braga, optaram por delimitar a história nos cinco anos passados entre o golpe civil-militar de 1964 e o assassinato de Marighella, em novembro de 1969, em uma emboscada comandada pelo delegado Sérgio Fleury – no filme, chamado de delegado Lúcio, interpretado por Bruno Gagliasso.

Uma escolha correta. Primeiro, porque o roteiro sintetiza, em alguns diálogos, um pouco da trajetória de seu personagem. Mesmo quem não o conhece, ou não leu o livro do jornalista Mário Magalhães, Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo, que serviu de base para o filme, é informado que, antes de entrar na luta armada, tardiamente, aos 55 anos, Marighella foi deputado constituinte pelo PCB, eleito em 1946, no breve período em que o “partidão” esteve na legalidade.

O filme também apresenta, sucintamente, as razões do rompimento do ex-deputado com o partido.

O recorte temporal em que se inscreve o roteiro, no entanto, impede que alguns outros aspectos importantes da sua vida sejam explorados. Sua produção poética e teórica – que não se resume ao Manual do guerrilheiro urbano, de 1969, escrito em condições extremamente excepcionais –; suas prisões e torturas anteriores, sob outra ditadura, a do Estado Novo, comandada por Getúlio Vargas; e mesmo sua atuação como deputado, são apenas palidamente mencionadas.

Carlos Marighella.

Por outro lado, o personagem que surge nas telas é repleto de nuances. Diferente, por exemplo, do Lamarca de Sérgio Rezende, filme de 1994 que narra a história de outro líder da resistência armada à ditadura, a interpretação de Seu Jorge nos entrega um Marighella que luta e resiste, mas que também chora e ri, canta e briga, ama e odeia.

E, não menos importante, um Marighella que sente medo. Medo da prisão, da tortura e da morte, que pressente próxima, principalmente depois do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, uma ação, aliás, da qual não participou diretamente.

Enegrecer a história

Mas Marighella não incomodou a direita brasileira, e o governo de Bolsonaro, ele próprio um apologista da ditadura e de seus torturadores e assassinos, apenas pelo passado que plasma nas telas. É principalmente sua intervenção no presente a razão pela qual o filme foi objeto de uma censura velada. Desde sua estreia mundial, em 2019, entraves burocráticos os mais diversos atrasaram seu lançamento no Brasil.

Nesse interregno, a Fundação Palmares comandada por Sérgio Camargo, para quem a escravidão foi “benéfica” para os negros, retirou seus livros da sua biblioteca, acusando-os de “bandidolatria”. Uma campanha nas redes sociais da extrema-direita foi empreendida com o objetivo de puxar para baixo a avaliação do filme no IMDb, que ágil e acertadamente, apagou as notas dos bois e bots bolsonaristas.

Há razão pra tanto ódio.

Da trilha sonora, com “Monólogo ao pé do ouvido”, de Chico Science e Nação Zumbi (que começa com os versos: “Modernizar o passado é uma evolução musical. O medo dá origem ao mal. O homem coletivo sente a necessidade de lutar. São demônios, os que destroem o poder bravio da humanidade”), à escolha de Seu Jorge, um negro retinto, para interpretar o “mulato” Marighella, quase tudo no filme dialoga com o nosso tempo.

Nele, se fala da fome, do racismo e do machismo; da violência policial e da corrupção; das prisões lotadas e dos trabalhadores explorados; do entreguismo e das políticas de conciliação que atravessam nossa história política, passada e presente, sempre em benefício das elites.

Luta armada e democracia

Mesmo a luta armada é tratada sob essa perspectiva. Dela pode-se dizer, hoje, que foi um equívoco ou uma aventura, e que quem pegou em armas não lutava pela democracia, pelo menos não a democracia liberal, que nos é vendida, insistentemente, como a única verdadeiramente possível.

Tudo isso pode ser verdade, e ainda assim nada justifica a violência criminosa dos governos militares. Primeiro, porque a correlação de forças era absurdamente desproporcional. Um punhado de militantes, em sua maioria mal e parcamente armados e treinados, enfrentou o poder e o aparelho estatais, com seus muitos mecanismos de inteligência e órgãos de vigilância, além das instituições repressivas, parte delas atuando clandestinamente e com financiamento estrangeiro.

Além disso, não é casual que a violência dos grupos armados aumentou na proporção da truculência institucional, de que o AI-5, decretado em dezembro de 1968, é o marco definitivo, mas não inicial. A ditadura não apenas forjou, desde o golpe que a implantou, as condições para que parte da oposição optasse pela resistência armada, mas forneceu as razões políticas para todas as formas de resistência que se opuseram a ela.

É preciso que se diga, sem receio: é legítima a insurgência, mesmo a violenta, contra governos ilegais que se sustentam na e pela tirania.

Wagner Moura come uma marmita em um acampamento do MTST.

Sob esse ponto de vista, mesmo a luta armada traz intrínseca uma aspiração, além de legítima, democrática, ao se sublevar contra um governo autoritário, ilegal, imoral, ilegítimo, corrupto e assassino. A narrativa fílmica proposta por Moura e Braga é, nesse sentido, irretocável. Menos por “justificar” a opção de uma minoria pela luta armada, mas por historicizá-la e politizá-la, algo que mesmo alguns historiadores, ultimamente, parecem ter esquecido de fazer.

Em uma das sequências mais impactantes do filme, o Marighella de Seu Jorge rompe a quarta parede e fala, olhando diretamente para o público, que “a gente não vai parar. É terror, sim. É terrorismo, mesmo”. Na cena, ele responde ao assassinato de seus companheiros, executados covarde e sumariamente por um grupo de milicianos agindo à margem da lei, mas à mando e em nome da ditadura.

Mas o que pode ser lido, à primeira vista, como um chamamento, quase uma ameaça de Marighella, pode e precisa ser lido à contrapelo. Em um país e um governo que continua a matar seus cidadãos, os de ontem e os de hoje, e à sua memória, e onde miseráveis se alimentando de lixo e osso podre incomoda menos que o vatapá servido em um acampamento do MTST, o terror, o verdadeiro terror, o único terror a ser temido e combatido, é o do Estado.

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