Bolsonarismo e polícia, uma simbiose autoritária

Projeto de lei em discussão no Congresso, amplia o controle das polícias militares pelo governo federal, e abre mais um precedente perigoso à democracia brasileira

Talvez porque muitos de nós estejamos entre horrorizados e mortificados com os 211 mil mortos, vítimas do coronavírus, e o misto de irresponsabilidade, incompetência e indiferença criminosa do governo com as vidas perdidas, não despertou a devida atenção o Congresso Nacional voltar a discutir o substitutivo ao Projeto de Lei 4.363/2001.

Ele altera, substancialmente, a estrutura organizacional e as funções das polícias militares dos estados e do Distrito Federal. Isso justamente em um momento, e em um governo, que tem estimulado, clara e abertamente, a politização da corporação – o que não é mera coincidência. Não por acaso, especialistas em segurança pública têm alertado, nas últimas semanas, para os riscos inerentes à proposta, à nossa já combalida democracia.

O substitutivo não é novo. De autoria do Poder Executivo, ele é de março de 2001. Entre idas e vindas na Casa, chegou a 2020 sem avançar muito. Em agosto do ano passado, o deputado paraibano Wellington Roberto, líder do PL, requereu à presidência da Câmara urgência na apreciação. Além de Wellington, assinaram o requerimento outros seis líderes de bancada – entre eles o paranaense Felipe Francischini, do PSL –, mais a deputada Major Fabiana, do PSL carioca.

Jair Bolsonaro e policiais militares: alinhamento ideológico. Crédito da foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

Todos da base aliada do governo. Significa? Significa.

Se aprovado, entre outras coisas o projeto pretende ampliar o escopo de atuação das polícias, como exercer a prerrogativa de credenciar e fiscalizar empresas de segurança privada e escolas de formação. Muda, também, o modo de indicação dos comandantes gerais das PMs, que passariam a ser nomeados a partir de uma lista tríplice elaborada pelos oficiais. Cria, ainda, o Conselho Nacional de Comandantes Gerais da Polícia Militar (CNCGPM), com assento nos ministérios de Defesa e da Justiça.

Atuando acima dos poderes executivos estaduais – aos quais estão submetidas as polícias militares –, e vinculado diretamente ao governo federal, o novo órgão teria competência consultiva e deliberativa sobre questões de segurança pública, com autoridade para decidir e padronizar procedimentos policiais em todo o país, independente dos estados.

Um último exemplo.

Aproveitando-se de uma brecha da Constituição, fruto de uma redação ambígua que atribui às PMs uma dupla função – órgãos de segurança nos estados e força auxiliar do Exército –, o projeto recrudesce a militarização das polícias, por exemplo, equiparando suas carreiras e patentes às do Exército. Como consequência, a nova lei praticamente inviabilizaria a continuidade de qualquer discussão, ao menos legislativa, sobre a desmilitarização, tema da PEC 51/2013, de autoria do ex-senador Lindbergh Farias, do PT carioca, arquivada pelo Senado.

Uma sólida base de apoio

Motim de policiais cearenses durou cerca de duas semanas. Crédito da foto: Agência Brasil.

Em fevereiro do ano passado, estourou o motim de policiais militares do Ceará. A sublevação durou cerca de duas semanas, período em que o número de homicídios disparou no estado, mais particularmente em Fortaleza. Mas a violência foi regra também entre os amotinados: encapuzados, policiais invadiram quarteis, depredaram viaturas, ameaçaram comerciantes e dispararam contra o senador Cid Gomes, em um dos mais noticiados episódios daqueles dias de tumulto.

À época, Bolsonaro minimizou a ilegalidade do movimento, e o tratou não como um motim, mas uma greve. O aceno aos policiais cearenses, parte de um movimento calculado, não foi um ato isolado. Em 2018, ele foi cabo eleitoral de inúmeras candidaturas, parte delas vitoriosas. No final do ano passado, anunciou que colocará novamente em pauta a ampliação do excludente de ilicitude, medida que ficou de fora do “pacote anticrime”, menina dos olhos do ex-ministro Sérgio Moro.

No começo de 2020, excluiu do relatório anual dos Direitos Humanos os indicadores de violência policial do ano anterior, alegando “inconsistência nos dados coletados”. O relatório, produzido a partir das denúncias ao “Disque 100”, mantido pelo governo federal, embora não o único, é um instrumento importante para a implementação de políticas de combate à violência, principalmente contra crianças e adolescentes.

Cada uma dessas atitudes serviu para sedimentar a base de apoio que Bolsonaro construiu, desde os tempos de parlamentar, entre os policiais militares, ampliada consideravelmente nesses dois anos como presidente. O alinhamento ideológico entre Bolsonaro e os PMs foi objeto de uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “Política e fé entre os policiais militares, civis e federais”, com resultados assustadores.

Os policiais militares são, das três categorias, os que em maior número apoiam o governo Bolsonaro, interagem com grupos bolsonaristas nas redes sociais e compartilham suas pautas como, por exemplo, o ódio aos grupos LGBTs e o “conservadorismo nos costumes e valores”. Nesse contexto, de politização e aparelhamento das polícias pela extrema-direita e o governo, o PL 4.363 é peça chave para os delírios autoritários do bolsonarismo. E não é casual que ele tenha ressurgido justamente agora.

Uma polícia politizada

Em Ponto-final: a Guerra de Bolsonaro Contra a Democracia, o filósofo Marcos Nobre defende que, com a crise gerada pela pandemia, Bolsonaro aprofundou sua aliança com os militares. Mas argumenta que, apesar das polícias militares serem, também, parte do pilar fundamental de sustentação ao governo, são as forças armadas que compõem o que ele define, metaforicamente, de “partido militar”.

De acordo com Nobre, os PMs não têm “a formação, o papel e os recursos de Exército, Marinha e Aeronáutica”, além de carecerem de uma estrutura e uma organização hierárquica e centralizada como a das Forças Armadas. O PL 4.363 pode sanar parte desses entraves, por exemplo, nivelando as carreiras e patentes das polícias estaduais e do Exército, ou com a criação do CNCGPM, ao menos teoricamente, capaz de criar uma estrutura centralizada e nacional.

Na prática, esses e outros dispositivos não apenas ampliam o caráter militar das PMs. Eles limitam o controle dos estados e de outros órgãos e entidades civis, na mesma medida em que dilatam a autonomia da corporação e legitimam, sutilmente, um maior controle pelo governo federal. É verdade que isso não garante, necessariamente, que as polícias estaduais integrem, em pé de igualdade, o “partido militar”.

Mas talvez não seja exatamente essa a ambição de Bolsonaro.

Há muita água por rolar, mas a soma de crises que se avolumam desde o ano passado, torna crível supor que Bolsonaro não disputará as eleições do ano que vem nas mesmas condições de 2018. Tensionar o ambiente político para que o pleito seja disputado em um clima de desconfiança e caos generalizado, pode ser uma boa estratégia, caso o desgaste aumente, para tentar garantir a reeleição.

E se ainda assim tudo der errado, há sempre a opção do golpe, nosso velho conhecido.

Em ambos os casos, o controle sobre uma estrutura capilarizada como a da PM é de extrema utilidade. Assim como o alinhamento ideológico de soldados e sua disposição em defender, não o Estado, nem mesmo o governo, certamente não a democracia, mas Bolsonaro. Mais Brasil, menos Brasília? Não quando está em jogo a possibilidade de transformar policiais em milicianos a serviço de um projeto autoritário de poder.

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