A política é o genocídio continuado por outros meios

Bolsonaro não se manifestou sobre o assassinato bárbaro e cruel de uma adolescente Yanomami em Roraima porque ele não se importa. Capaz de dar a graça, em céleres 24 horas, ao corpo hetero, masculino, branco, viril e marombado de Daniel Silveira ele é, por outro lado, incapaz de se comover ante o corpo violentado de uma menina indígena

Na semana passada, uma menina indígena Yanomami de 12 anos, da região do Waikás, em Roraima, foi sequestrada, estuprada e assassinada por garimpeiros. O problema, antigo no estado e responsável por inúmeros efeitos deletérios nas tribos que vivem na região, ganhou novo impulso no governo Bolsonaro.

Somente em 2021, a garimpagem aumentou 46% nas terras Yanomami. Em outras regiões os números são ainda mais aterradores. Na Terra Indígena Munduruku, sudoeste do Pará, desde janeiro de 2019 houve um aumento de 363% na área destruída pelo garimpo ilegal.

O estupro e o assassinato da adolescente, cujo nome não foi revelado, é o corolário de uma sequência de violências a que estão submetidas as comunidades originárias.

A cooptação, paga em pequenas gramas de ouro, principalmente de homens indígenas, sujeitados ao trabalho semiescravo; a prostituição de crianças e adolescentes, cujos corpos se transformam em mercadoria barata; ameaças e ataques às aldeias; a proliferação de doenças e a sobrecarga do já precário sistema público de saúde, são alguns exemplos.

Além, claro, das famílias, às vezes comunidades inteiras, expulsas para dar lugar à exploração da terra.

Defensor do garimpo ilegal e aliado dos garimpeiros, Bolsonaro espera ainda para esse primeiro semestre a aprovação do PL 191/2020, que libera a mineração em terras indígenas, e cujo regime de urgência – que permite pular etapas da tramitação e colocar o PL em votação diretamente no Plenário, sem passar por comissões – foi aprovado em março.

Mas a sanha destruidora do governo tem pressa e, em fevereiro, o presidente assinou decreto que instituiu o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal em Pequena Escala. Oficialmente, o Pró-Mapa pretende “estimular o desenvolvimento da mineração artesanal e em pequena escala”, visando a necessidade de um “desenvolvimento sustentável regional e nacional.”

Uma grande mentira, como outras tantas vindas de um governo genocida. Pelas suas características, não há como o garimpo ser “sustentável”, e há muito tempo ele deixou de ser praticado em pequena escala e artesanalmente. Na prática, o decreto legalizou a atividade enquanto espera que Arthur Lira (PP-AL) faça o serviço sujo para o qual foi eleito presidente da Câmara dos Deputados.

Não por acaso Bolsonaro, que na mesma semana prestou solidariedade à família enlutada de Renan Loureiro, morto durante um assalto no bairro Jabaquara, em São Paulo, nada disse sobre o estupro e o assassinato da adolescente Yanomami.

Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que em janeiro, como parte da estratégia antivacina do governo, foi a Botucatu, interior de São Paulo, visitar uma menina que teve parada cardíaca após tomar vacina contra a covid – relação descartada pelos médicos – permanece, até agora, silente.

Morte e desaparecimento

Como quase tudo no governo Bolsonaro que diz respeito às chamadas minorias, também nesse caso o silêncio não é mudez.

Bolsonaro não se manifestou sobre o crime bárbaro e cruel em Roraima porque ele não se importa. Capaz de dar a graça, em céleres 24 horas, ao corpo hetero, masculino, branco, viril e marombado de Daniel Silveira (PTB-RJ) ele é, por outro lado, incapaz de se comover ante o corpo violentado e selvagemente morto de uma menina indígena.

Herdeiro direto do autoritarismo civil-militar, Bolsonaro dá continuidade, também nisso, à ditadura que ele celebra. A Comissão Nacional da Verdade estima que, entre 1946 e 1988, ao menos 8.350 indígenas foram mortos. Mais da metade, durante os 20 anos da última ditadura.

Em apenas uma comunidade, os Waimiri-Atroari, do Amazonas, cerca de dois mil indígenas foram assassinados ou “desaparecidos”, entre os anos de 1972 e 1975, porque resistiam à construção da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista. Já a abertura da rodovia Transamazônica, no mesmo período, afetou 29 grupos da região, entre eles 11 etnias que viviam, até então, em completo isolamento.

Além das práticas de assassinato e desaparecimento, indígenas foram mortos em conflitos com o exército e de fome, torturados, presos em campos de concentração, removidos à força de suas terras ou inoculados, propositadamente, por epidemias. Em 1974, mais de 30 membros do povo Kinja morreram depois que aviões lançaram veneno sobre a aldeia Kramna Mudî.

Nos termos do camaronês Achille Mbembe, a política brutalista dos militares, em que o assassinato deixa de ser uma exceção e as situações extremas são normalizadas e naturalizadas, sobreviveu ao período. E encontrou terreno fértil em um governo que fez da política o genocídio continuado por outros meios.

Uma política de morte que não pesa apenas sobre as comunidades originárias, mais diretamente afetadas por ela.

O extermínio indígena, e o silêncio oficial que paira sobre ele, é parte de uma tentativa de legislar sobre o passado, de “desdemocratizá-lo”, nas palavras do historiador brasileiro Arthur Ávila. Em outros termos, negar o genocídio ou simplesmente desqualificar e deturpar a causa indígena – como faz, por exemplo, o documentário “Cortina de fumaça”, da empresa Brasil Paralelo, divulgado na página oficial da Funai – é parte de um “esquecimento celebratório” que banaliza a violência e o assassinato.

Na perspectiva do governo e seus aliados, aos indígenas resta como alternativa, além da morte física, a simbólica, com sua inscrição precária e compulsória, ditada pelo Estado e o mercado, aos parâmetros de uma cultura que não a sua, e onde serão sempre subalternizadas. Em ambos os casos, as feridas do passado não importam, tampouco a violência do presente. No horizonte de expectativa, há o desaparecimento de toda forma de alteridade pelo aniquilamento do outro, um desejo que atravessa a extrema-direita brasileira – embora não só a brasileira.

A sobrevivência dos povos originários e de sua cultura, nesse sentido, interessa a todos os que aspiram a uma vida em comunidade em que a igualdade possível – de direitos, liberdades e garantias fundamentais – não seja, perversamente, construída sobre as ruínas das diferenças irredutíveis que caracterizam as democracias.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima