500 mil mortos, uma página gloriosa do bolsonarismo

As evidências da responsabilidade do governo pelos 500 mil mortos são muitas. Mas no discurso bolsonarista, milhões de vidas foram salvas, a vacinação é um estrondoso sucesso, e o problema somos nós, que torcemos pelo vírus e contra o governo

Nos dias 4 e 6 de outubro de 1943, em Posen, cidade polonesa então ocupada pela Alemanha nazista, 92 oficiais da SS se reuniram para ouvirem as palavras do Reichsführer-SS, Heinrich Himmler. No que ficou conhecido como “Discurso de Posen”, um dos raros documentos onde o holocausto é abordado diretamente por um membro do alto escalão, Himmler se refere ao extermínio do povo judeu como “uma página gloriosa da nossa história”, mas que “nunca foi e nunca será escrita”.

Essa relação aparentemente ambígua que genocidas mantém com seus crimes, que os celebra ao mesmo tempo que os nega, foi relembrada no começo dessa semana, em uma postagem no seu perfil do Facebook, pelo também historiador Michel Ehrlich, um dos coordenadores do Museu do Holocausto de Curitiba.

Ele se referia, especificamente, aos 500 mil mortos pela Covid-19, marco vergonhoso que o Brasil atingiu no final de semana, e ao comentário do ministro das Comunicações do governo Bolsonaro, Fábio Faria. Na sua conta no Twitter, em um tom que mal disfarçava o deboche, Faria comentou que “em breve vcs verão políticos, artistas e jornalistas ‘lamentando’ o número de 500 mil mortos. Nunca os verão comemorar os 86 milhões de doses aplicadas ou os 18 milhões de curados, porque o tom é sempre o do ‘quanto pior, melhor’. Infelizmente, eles torcem pelo vírus”.

O pseudoargumento não é novo, pelo contrário. Ele vem sendo repetido, reiteradas vezes, por auxiliares de Bolsonaro e seus seguidores nas redes sociais. Estimulados pelo próprio presidente, que coloca em dúvida inclusive o número de mortos, enquanto segue atacando e boicotando medidas de prevenção, bolsonaristas espalham mentiras e desinformação e, de quebra, escarnecem de mortos e enlutados.

É verdade que o Brasil já distribuiu milhões de vacinas, e que outros milhões sobreviveram à pandemia. Mas se Deus mora nos detalhes, as mentiras de Bolsonaro e dos bolsonaristas, também.

Não se enfatiza o número de mortos apenas pela excepcionalidade trágica da pandemia, mas porque é preciso que saibamos como, quais as condições, por que, enfim, deixamos que meio milhão de brasileiros e brasileiras perecessem.

As milhões de doses distribuídas e aplicadas estão aquém, muito aquém, do mínimo necessário para garantir a almejada segurança sanitária. Estamos no final de junho e, até agora, cerca de 12% da população, apenas, foi imunizada com as duas doses. Nesse ritmo, não retomaremos à “normalidade”, seja lá o que isso signifique, antes do próximo ano. Pior, antes de uma terceira onda ceifar outras milhares de vidas.

Para Heinrich Himmler, o extermínio do povo judeu seria para os nazistas “uma página gloriosa da nossa história”. Foto: reprodução.

Estranhas coincidências

O silêncio de Bolsonaro sobre o tamanho da nossa tragédia, é mais um indício da insensibilidade característica do presidente – lembram do “não adianta ficar em casa chorando”? Mas não apenas isso. A intenção é produzir uma narrativa capaz de ofuscar a irresponsabilidade criminosa de Bolsonaro e seu governo pelo genocídio ainda em curso, exagerando ou simplesmente distorcendo dados da realidade.

O Brasil se transformou em um pária internacional; o Ministério da Saúde atrasou até o limite do insuportável a compra de vacinas; um gabinete paralelo foi criado para legitimar o discurso presidencial sobre o “tratamento precoce”; o presidente convocou e participou de manifestações, boicotou e boicota medidas de prevenção, mesmo as mais simples, como o uso de máscaras, e agora deu por levantar dúvidas sobre o número de mortes, acusando uma delirante supernotificação de óbitos.

As evidências de que o governo tem responsabilidade, direta ou por simples omissão, pelo número de cadáveres, são muitas. Mas no discurso bolsonarista, sintetizado no tuíte do ministro Faria, milhões de vidas foram salvas, a vacinação é um estrondoso sucesso, e o problema somos nós, que torcemos pelo vírus e contra o governo.

No discurso em Posen, Himmler justifica o silêncio sobre o holocausto como uma forma de evitar que os judeus, agitadores e desordeiros, utilizassem a publicidade do extermínio como pretexto para sabotar o Estado alemão, chamando pelo nome de genocídio o que para o general era uma “página gloriosa” da história teuta.

É um outro traço da relação de genocidas com seus crimes, que caminha pari passu com o seu silêncio: produzir incessantemente inimigos a quem responsabilizar por toda desordem presente e futura. Justifica-se, assim, o silêncio do genocida. Mas, não menos importante, se incitam seus cúmplices, convocados a participar de uma grande mobilização em defesa da pátria e seu líder. Com violência, se preciso.

Não são novidades as incômodas coincidências entre o governo Bolsonaro e o nazismo. Em janeiro de 2020, o ex-secretário especial da Cultura Roberto Alvim mimetizou o discurso e figura do ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels. Em março desse ano, o assessor especial para assuntos internacionais, Filipe Martins, em sessão no Senado, reproduziu o gesto dos grupos supremacistas brancos, que têm forte ligação com os movimentos neonazistas.

Mas talvez a evidência que, cotidianamente, torna essa relação mais visível, é a capacidade que tem o governo Bolsonaro de mentir compulsivamente, de usar a mentira para arregimentar sua base política, e de conclamar sua militância a cerrar fileiras em sua defesa incondicional. E isso apesar das evidências acumuladas de que o governo poderia, se tivesse tomado as medidas necessárias, evitar milhares de mortes. Para Bolsonaro e o bolsonarismo, as 500 mil mortes são uma nota de rodapé na página gloriosa da história.

Jair Bolsonaro: “não adianta ficar em casa chorando”. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.

Para ir além

500 mil mortos e contando…

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