2022, o ano que não acabou

Nos Estados Unidos, houve uma tentativa de golpe; aqui, chocamos o ovo da serpente

Os Estados Unidos têm um vocabulário bastante singular para nomear suas tragédias. Normalmente, ele serve para estigmatizar agentes externos e amenizar responsabilidades internas. O 11 de setembro, que nesse ano completa uma década, foi um atentado terrorista. Assassinatos em campi universitários ou escolas secundárias, responsáveis pela morte de centenas de americanas e americanos, são apresentados como ato solitário de um desvairado, mesmo que seu autor seja algum extremista religioso ou político.

A prática, incorporada ao léxico das mídias e comentaristas brasileiros, principalmente os do mainstream, não mudou mesmo em eventos que notoriamente confrontavam a versão do “ataque solitário”, caso das manifestações de supremacistas brancos em Charlottesville, em 2017. Trump surfou nessa onda, formando e insuflando sua própria milícia, culminando no show de horrores da terça-feira.

Uma das diferenças da invasão ao Capitólio e da tentativa de golpe protagonizadas pelo presidente estadunidense e seus cúmplices, é que não há como chamar isso de outra coisa senão pelo nome: um atentado terrorista. Mas perpetrado desde dentro e, a exemplo de 2001, ainda que por caminhos distintos, expõe uma vez mais a fragilidade daquela que se autoproclamou a maior democracia do mundo.

Um conjunto de fatores contribuiu para o roteiro golpista do dia 06 último. Em artigo para o Café História, o historiador Arthur Lima de Ávila, professor da UFRGS, mostra como a disputa pela memória da Guerra Civil alimentou a narrativa de uma “história patriótica” habilmente manipulada pelos supremacistas brancos do presente, Trump à frente.

Esse passado foi um dos ingredientes do combustível nacionalista que serviu de pretexto aos anseios antidemocráticos e autoritários da extrema-direita norte-americana, e não surpreende vermos, entre os manifestantes travestidos de vikings, outros envergando, orgulhosamente, bandeiras e símbolos confederados, e trajando camisetas com alusões a Auschwitz e a movimentos neonazistas, entre outros.

No Brasil, o ovo da serpente

Na terça, enquanto lideranças políticas de todo o mundo, brasileiras inclusive, condenavam o atentado ao Capitólio, Bolsonaro silenciou. Ontem, afirmou que foi a falta de confiança nas eleições que “levou a este problema que está acontecendo lá”. E em tom de ameaça, asseverou que ele pode se repetir aqui, caso tenhamos voto eletrônico em 2022 – o mesmo que, em 2018, o elegeu e a dois de seus filhos.

Já sabemos como esse tipo de ameaça termina. E não há, no horizonte, nenhum indício de que a violência dessa semana nos EUA sirva para fazer recuar os constantes e seguidos ataques de Bolsonaro à democracia e ao país. Bolsonaro já deixou claro, em 2018, que não tem nenhum pudor, nem pretende respeitar outro resultado que não aquele que lhe garanta a vitória. E até as próximas eleições, terá ainda muito tempo para articular o apoio de que precisa para, se necessário, tentar o autogolpe caso as urnas lhe sejam desfavoráveis.

Fracassará, como fracassou Trump? Em entrevista à BBC, o cientista político Steve Levitsky, coautor de “Como morrem as democracias”, argumenta que a tentativa do presidente estadunidense falhou porque Trump foi “completamente incapaz de obter apoio dos militares”. Os mais otimistas – ou talvez mais ingênuos – insistem que não há, entre os militares hoje, pré-disposição a embarcar no que chamam de “aventura golpista”.

Tenho dúvidas. Não apenas porque no Brasil os militares, distintamente aos norte-americanos, têm um amplo histórico golpista, de que 1964 é apenas o exemplo mais recente. Mas também porque Bolsonaro tem se revelado hábil em afagá-los, seja institucional – são mais de seis mil, da ativa e da reserva, ocupando cargos em diferentes escalões do governo – ou politicamente, aliciando-os como aliados, como fez em fevereiro desse ano, com o motim dos PMs no Ceará.

Antes de serem um freio, o provável, a nos pautarmos pela conduta do presidente, é que a violência das milícias de Trump sirvam como um combustível a inflar a violência de sua própria milícia. A não ser que uma aliança entre instituições, os partidos de oposição e as ruas coloquem um freio nos planos autoritários e golpistas de Bolsonaro, 2022 será um ano terrível e interminável.

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