Uma farsa com cara de realismo fantástico

Em Um Animal Amarelo, viajamos por três países e quarenta anos de história para contar e recontar o Brasil e nossa tristeza.

Gabriel García Márquez dizia que tudo o que escreveu em Cem Anos de Solidão eram memórias de sua juventude. Gabo, como o escritor colombiano era chamado por amigos, fazia troça com seus leitores, já que foi um dos grandes responsáveis pela criação e divulgação do realismo fantástico, movimento literário que parece estar entranhado na cultura latino-americana. No realismo fantástico, a magia anda de mãos dadas com o banal, como se o fantástico não fosse tão extraordinário assim. Talvez porque a América Latina é já por demais assombrosa.

Em Um Animal Amarelo, quinto longa-metragem do carioca Felipe Bragança, o realismo fantástico está espalhado em cada canto de sua narrativa. A começar pelo bicho que dá nome à fita, uma criatura que devora garotas do protagonista, o cineasta Fernando (Higor Campagnaro). De alguma forma alter ego de Bragança, Fernando, branco de classe média, sonha em filmar ele próprio aquela história que assistimos. Mas para tal, precisa de dinheiro, uma etapa da produção cinematográfica que entristece, enlouquece ou corrompe qualquer realizador. Sem dinheiro e sem filme, Fernando vai para Moçambique tentar enriquecer no garimpo ilegal, mas logo é preso e feito de escravo por uma gangue que defeca pedras preciosas.

Na farsa fantástica de Bragança, os moçambicanos, que foram dominados pelos portugueses até 1975 e os expulsaram após dez anos de guerra, são hoje os exploradores do homem branco. A tríade formada por Catarina (Isabél Zuaa), Cesarino Boavida (Matamba Joaquim) e Lucília Raimundo (Seixas) obrigam Fernando a ir para Portugal para vender suas pedras, já que por ser branco pode se passar por alguém mais confiável. Aliás, é a voz de Isabél Zuaa que narra a história, uma acepção óbvia sobre o lugar e a cor das histórias oficiais e fictícias.

Um Animal Amarelo é um movimento raro no cinema contemporâneo brasileiro. O longa abrange três países e cerca de quarenta anos. Começa narrando a vida de Sebastião (Herson Capri), o avô de Fernando, um homem bruto que encontrou o amor na velhice, apaixonado por um jovem guitarrista. Faz um longo preâmbulo para nos falar da loucura que esses personagens sofrem pela vontade de enriquecer. Bragança faz uma espécie de fábula tropicalista em que nada é fato e tudo é real, pois fantástico.

Em Portugal, Fernando se encontra com patéticos compradores de joias, gente rica e esnobe demais. É lugar comum reduzir a elite a míopes gananciosos, mas, mesmo assim, o filme consegue fazer comédia e produz uma das suas cenas icônicas, quando a bela Susana (Catarina Wallenstein), amante portuguesa de Fernando, lhe mostra seus rubis encravados na genitália.

Um Animal Amarelo é um desses filmes que falam de muitas coisas. O bom é que sabe fazê-lo sem entediar. O melhor é que mente para nós com a cara de pau de quem está falando a verdade. Não é aula de história, mas até que poderia ser.

Disponível para aluguel na Sala Maniva (https://www.salamaniva.com/).

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