Três histórias de amor brincam com o acaso em “Roda do Destino”

Cineasta japonês aclamado, Ryusuke Hamaguchi, cria filme em episódios para tratar das profundezas da alma humana com tom literário

Não é por acaso que o japonês Ryusuke Hamaguchi se tornou um dos cineastas contemporâneos mais bem quistos pela crítica internacional. Seus filmes são surpreendentes e originais, mesmo que, a rigor, possam parecer apenas histórias bem realizadas. Isso acontece pela sua predileção por narrativas em que a fala ganha total destaque. Vê-se (ouve-se!) isso claramente em “Drive My Car” (já publiquei crítica aqui no Cine Garimpo) e no intimista “Roda do Destino”, que também leva a sua assinatura no roteiro.

“Roda do Destino”, surpreendentemente, foi lançado quase que comutantemente com “Drive My Car”, ambos em 2021. Para quem sabe acerca dos percalços do que é fazer um filme, é um dado para lá de curioso. São poucos os cineastas que alcançam tamanho sucesso. Aliás, Hamaguchi já tem um novo longa-metragem a ser lançado ainda neste ano, “Our Apprenticeship”, em seu título internacional, algo  como “nossa aprendizagem”, em tradução livre.

Cineasta portanto prolífico, parece seguir a linha de seus personagens, escrevendo tantos filmes como as palavras que eles falam aos borbotões em cada uma de suas obras. “Roda do Destino” é composta por três episódios de mais ou menos quarenta minutos cada. Em todos eles, coincidências acabam transformando e realinhando a narrativa. Não são simples tropeções, são daquelas coincidências que fazem o espectador dar pequenos saltos, coisa que nas palavras do próprio cineasta, ficaria bem em melodramas, mas não em filmes como os dele. Hamaguchi, contudo, não só subverte as teorias de escrita de roteiro, mas o faz com maestria. Suas coincidências funcionam muito bem na sua roda da fortuna cinematográfica.

O primeiro episódio, Magia (ou algo parecido), mostra duas amigas que conversam sobre um cara que uma delas conheceu recentemente. A jovem relata com detalhes o encontro, o seu pretendente e a relação que ele tinha com sua ex. Ela acha que está se apaixonando. Saberemos depois que a garota que ouve a história é a tal ex-namorada. O segundo episódio se chama Porta Escancarada e mostra a história de uma estudante universitária que, embora admire seu ex-professor escritor, topa criar uma armadilha para denunciá-lo sexualmente. Para tal, ela grava uma conversa quando tenta seduzi-lo. Como artimanha, lê um trecho erótico do livro que o professor escreveu, justamente o que o professor – confessa depois – gostaria de fazer: gravá-la lendo seu livro. O último episódio conta que um vírus infectou diversos computadores ao redor do mundo, enviando arquivos pessoais para as listas de contatos de seus usuários. A crise foi tamanha que levou a humanidade a ficar offline, ninguém sabe por quanto tempo. Em uma sociedade sem internet, as relações à distância mudam. No episódio, uma mulher volta a uma cidade no interior do Japão para um encontro da turma de ensino médio, vinte anos depois. Mas não encontra ninguém para conversar, não lembra direito das pessoas, se sente estranha. No dia seguinte, porém, esbarra com uma antiga namorada com quem havia perdido contato.

Essas são apenas algumas das coincidências de “Roda do Destino”. Há outras que vão jogando espectador e enredo de um lado para outro. Mas o segredo de Hamaguchi é que essas coincidências não são o que há de mais importante nas suas histórias. Diferente dos folhetins que usam o acaso para fazer os pontos de viradas, vide os inúmeros casais que se descobrem irmãos ou pais que acham filhos perdidos, as coincidências aqui são construídas para esmiuçar o ser humano em profundidade. Hamaguchi faz com que seus personagens dialoguem à exaustão, porque é na fala que ele encontra o caminho para esse estudo do que é mais humano. É na fala, portanto, que esses personagens se desdobram, que se transformam, que avançam para outro lugar de suas vidas.

A mise-en-scène em “Roda do Destino” consiste quase que na sua totalidade em planos fixos, acompanhando os diálogos em planos e contraplanos de forma acadêmica. Ou seja, nenhuma invenção aqui, porque é também nos diálogos que o filme se faz e se reinventa. No letreiro de abertura, o filme se apresenta como “contos de Ryusuke Hamaguchi”, deixando claro o flerte de seu autor com a literatura. Não é que não haja um “olhar cinematográfico”. Há. O que ressalto é que a visão fílmica do cineasta trabalha para deixar o texto extremamente límpido. É que a alma humana é um lugar bem obscuro, para escavá-la, é necessário ter muita clareza.

Filme disponível para aluguel no streaming Belas Artes à La Carte.

Roda do Destino – 2021, FIC, 121 min.

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