Titane fala de feminismo com olhar único

Mistura de bizarrices, embate de gêneros e desamor marca esse terror ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cannes.

O mais impressionante em Titane (Julia Ducournau) não é que sua protagonista, Alexia (Agathe Rousselle), tenha engravidado de um carro, nem a violência explícita que trafega seus 108 minutos quase que sem descanso. O mais impressionante desse filme de terror feminista é que ele renega qualquer título de bom mocismo.

O cinema contemporâneo padece de um certo mal, muito ligado a ditames morais. São vários os exemplos de filmes que ao encararem as grandes questões atuais (identitarismo, empoderamento, racismo) o fazem evocando personagens de pureza e alma límpidas. Como se para lidar com esses assuntos, não fosse possível haver contradição alguma. É o caso de Corra, de Jordan Peele, ou para citar um exemplo brasileiro, o Que Horas Ela Volta, de Anna Muylaert. E esta não é uma crítica à qualidade artística dessas obras, mas sim à nossa visão de heróinas e heróis. Em Corra, o peso do racismo é tamanho, que o seu protagonista é amassado entre as engrenagens do roteiro. Não há espaço para qualquer desvio. No Que Horas Ela Volta, Regina Casé vive uma empregada doméstica tão reta, que seu maior defeito é roubar o jogo de café que ela própria deu de presente para a patroa e que nunca fora usado, pois é um tanto humilde.

É um bocado assustador observar Titane por esse viés. Já na primeira sequência, quando somos apresentados a Alexia criança, estamos dentro de um veículo em uma estrada. Ela, sentada atrás, chuta insistentemente o banco do motorista, irritando profundamente seu pai, que acaba causando um acidente. Por causa de um traumatismo craniano, os médicos colocam uma prótese de titânio na cabeça de Alexia. O assustador aqui, é que a personagem nos é mostrada como uma criança má. Sim, pode ser apenas birra infantil, mas o filme não nos dá muita brecha para ver diferente.

Anos depois, Alexia é uma adulta que faz show de dança erótica sobre um veículo. Ela é uma subcelebridade, dá autógrafos, mas também sofre assédio. Alexia, contudo, não é frágil. Ela revida e assassina seu agressor com destreza. O interessante, é que Titane discute a violência de gênero a partir de uma mulher que não é aquela vítima padrão. Ao contrário, fala dessa violência a partir de uma personagem que exerce poder sobre todos que lhe rodeiam. Os seguidos assassinatos são uma forma didática de nos provar essa tese.

Grávida e fugitiva da polícia, ela transforma seu corpo cortando o cabelo e raspando as sobrancelhas, a ponto de lembrar o filho desaparecido de um bombeiro (Vincent Lindon). Na sua necessidade de passar desapercebida, aceita a nova vida e o novo pai, gerando uma das relações pai/filho(a) mais estranhas e bem construídas da história do cinema. Os jogos de força e poder que a dupla desempenhará, assim como o debate da masculinidade e de gêneros empregado no filme têm potência avassaladora.

Titane é uma obra rara, dessas que surgem a cada década e transformam para sempre o cinema. Muito embora lembre em muito seu filme irmão Crash: Estranhos Prazeres (David Cronenberg, 1996) pois se aproxima no tema, sua visão de mundo é totalmente única. Titane não só debate o nosso mundo atual e doente, mas o faz olhando de um outro lugar.

Titane – 2021, FIC, 108min, disponível para assinantes no Mubi.

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