O Barco é exemplo raro de filme poético

O cineasta Petrus Cariry esculpe uma obra sensorial, recheada de hermetismos, metáforas e símbolos.

Há um deleite sensorial em O Barco, que não é comum de se ver no cinema nacional. O filme do cearense Petrus Cariry é carregado de sensações quase que tácteis e está impregnado por um tempo mais preocupado com a poesia de cada cena do que com os formatos narrativos costumeiramente empregados. De tom fortemente hermético, não é obra de grande público, é, ao contrário, um experimento que se aproxima do limiar da narrativa, que quase esquece dos ditames da indústria e suas reviravoltas e conflitos.

Petrus Cariry é um esteta. Assinando também a direção de fotografia, enquadra seus personagens – pescadores em sua maioria – com um rigor quase que soviético. O aparente paradoxo da união de linguagem rígida, algo tarkovskiana (O Sacrifício – 1986, Solaris – 1972), com o relevo veranil daquele povoado de pescadores, é um dos elementos de grande impacto.

No enredo, temos a história de A. Batizado apenas com a primeira letra do alfabeto, o personagem de Rômulo Braga é o primogênito de uma extensa linhagem de irmãos. Anos antes, sua mãe, ao se deparar com uma cartilha, encantou-se com os primórdios da escrita e deu a cada um dos filhos que nascia um nome que era apenas uma das letras. Ela gerou 26 descendentes. E embora a genitora passe a vida tentando formar palavras com essas letras, as vidas de A, B, C, D… se resumem ao trabalho da pesca cada vez mais escassa.

A tem o anseio de se libertar da vida pequena, anseia outros mares. Um sábio cego, que lhe fala um misto de profecias e agouros, diz que os peixes estão em fartura longe dali. Quebrar ondas, contudo, não é tarefa simples para uma terra de jangadeiros. Então surge o barco, grande embarcação que fenece à beira-mar e precisará ser restaurado. Ao mesmo tempo, aparece naquelas praias uma mulher misteriosa que tem o dom de contar história nunca ouvidas. Noite a noite A desejará escutá-la, um tanto por volúpia, um tanto pela sede de ficção.

O Barco, em muito, é um filme sobre literatura, sobre ficcionar. Tanto que a mulher misteriosa encarna uma espécie de Sherazade e suas mil e uma noites. A obra de Cariry, adaptada de um conto homônimo de Carlos Emílio Corrêa Lima, se dá no ato da oralidade e no encantamento da narrativa sobre o ser humano, sobretudo no vislumbre mágico dos mundos paralelos que se abrem ao leitor/ouvinte. O Barco tem um quê de realismo fantástico e é bonito perceber que o que há de mais pertinente ao gênero é a contação de histórias e a capacidade que esses rituais têm de nos mandar para outros oceanos e para fora das cavernas.

O Barco é o quarto longa-metragem de Petrus Cariry, um cineasta que vale muito ser descoberto por um público mais amplo, muito embora seja bastante conhecido e celebrado no circuito alternativo.

O Barco – 2018, FIC, 72min, disponível no Embaúba Play.

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