Nomadland propõe hibridismo na linguagem e afeto no olhar

Filme levou três estatuetas no Oscar deste ano, incluindo melhor filme e direção.

Pelo segundo ano consecutivo, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas apontou para Hollywood que suas fórmulas estão gastas. Com o prêmio de Melhor Filme para Nomadland, o Oscar parece reafirmar que está mais interessado em um outro tipo de cinema. Lembremos: em 2020, ainda em um momento pré-pandemia, o prêmio máximo foi para o longa-metragem Parasita, produção sul-coreana falada em coreano.

Embora Nomadland seja um filme norte-americano, falado em inglês e sobre os Estados Unidos, sua linguagem não é tão comum aos filmes realizados por lá. A diretora Chloé Zhao, chinesa de nascença, lançou mão de algo muito comum às cinematografias de outros países, ela rodou uma ficção utilizando-se de não atores que interpretam papéis de si próprios. Embora a protagonista seja vivida brilhantemente pela atriz Frances McDormand, o que aliás lhe rendeu mais uma estatueta para a coleção (agora ela tem três), há outros importantes papéis vividos por pessoas que nunca tinham estado em uma produção cinematográfica. O resultado foi, também, um Oscar de Melhor Direção para Zhao.

Nomadland narra a história de Fern, uma viúva que passou a viver em uma van após o colapso econômico de sua cidade, na zona rural de Nevada. A quebradeira veio ainda no encalço da crise de 2008, quando uma bolha econômica dentro do mercado imobiliário dos Estados Unidos fez milhares de pessoas perderem suas hipotecas, suas casas. A tal cidade de Fern dependia sobretudo de uma fábrica de gesso, produto que é utilizado largamente na fabricação de residências. Assim, acompanhamos a personagem em constante movimento pelo país, pulando de região em região, de emprego temporário em emprego temporário. Logo percebemos que Fern não é a única, há toda uma comunidade de pessoas que vivem em carros e trailers. Muitas delas, e é o caso de Fern, o fazem por opção e não simplesmente por questões financeiras. Chloé Zhao aprofunda seus personagens justamente quando evita olhá-los como simples migrantes empobrecidos. Na verdade, há toda uma filosofia de vida que permeia suas narrativas.

Trata-se de uma adaptação de uma reportagem publicada em livro (Nomadland: Sobrevivendo aos EUA no século 21, escrita por Jessica Bruder). Os tais personagens reais, Linda May, Charlene Swankie e Bob Wells, são, inclusive, os protagonistas do texto de Bruder. Para um desavisado, a escolha estilística de Chloé Zhao pode parecer revolucionária, mas não é. O hibridismo (ficção x documentário) está presente no cinema desde o seu surgimento e vem sendo experimentado com muito vigor nas últimas décadas. Com a chegada das câmeras digitais, ficou mais barato filmar, permitindo cineastas rodar materiais brutos muito mais extensos do que anteriormente poderiam fazê-lo em película. Dessa forma, começaram a surgir documentários que, a partir de uma grande gama de cenas rodadas, tiveram na montagem a capacidade de forjar ficções. Do mesmo modo, ficções passaram a emular documentários, além de muitas outras nuances e gradações. No entanto, o dito cinema híbrido não é tão comum na produção cinematográfica hegemônica, ficando longe das grandes produções. Talvez agora a coisa esteja mudando.

O Brasil, por exemplo, tem uma infinidade de títulos que misturam o documental e o ficcional, sobretudo nas últimas duas décadas. Filmes como Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro, Juízo, de Maria Augusta Ramos, e O Céu sobre os Ombros, de Sérgio Borges, são só alguns deles.

É claro que não é apenas o tipo de escolha de linguagem de uma obra que a faz ser melhor ou pior. A qualidade de Nomadland se faz visível por outros diversos fatores. Frances McDormand encarna, de fato, a nômade contemporânea com grande verdade. A personagem fala pelo olhar, pelo corpo, pelo modo de andar e de se mexer. É uma das grandes interpretações da história, sem dúvidas. O modo como Zhao integra o documental em sua ficção também é coeso e sem turbulências, o que ajuda na dita ilusão do cinema clássico narrativo. Mas talvez seja através do esforço por olhar a vida desse povo sem endereço, que o filme se faz mais pleno. Porque a diretora o faz com carinho e amor. Como ela mesma disse na premiação do Oscar, “as pessoas nascem boas”, citando poema em sua língua mãe, e “eu sempre achei bondade nas pessoas que encontrei”. Talvez em alguns anos essas possam vir a ser frases bobas ou cafonas. Hoje, com todo o neofacismo que brota pelos grotões, é tal qual revolucionário.

Nomadland

2020. HIB, 108min. Ainda não disponível nas plataformas de streaming.


Para ir além

Para ele, Covid continua uma gripezinha…
Vencer ou vencer!

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

O (des)encontro com Têmis

Têmis gostaria de ir ao encontro de Maria, uma jovem vítima de violência doméstica, mas o Brasil foi o grande responsável pelo desencontro

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima