Lázaro Ramos estreia na direção de ficção com Medida Provisória

Filme apresenta um Brasil distópico em que governo deporta para a África qualquer pessoa de traços afrodescendentes. Entre erros e acertos, obra pretende ampliar debate antirracista no país

O que há de mais interessante em Medida Provisória, longa-metragem de ficção dirigido pelo ator Lázaro Ramos, é a sua premissa. O filme narra um Brasil em um futuro distópico, quando o governo passa a deportar pessoas negras para o continente africano. A ideia é que, em uma sociedade extremamente racista, o congresso aprova uma lei que visa uma reparação aos danos causados pela escravidão. Um claro contorcionismo semântico, uma reviravolta lógica que se não fosse pelos tempos em que vivemos, soaria totalmente inverossímil. Hoje, depois de tantas bizarrices protagonizadas por Trumps e Bolsonaros, a história é outra.

Lázaro Ramos opta por construir um filme pop, escala atores de sucesso (Alfred Enoch, Taís Araújo e Seu Jorge), costura um roteiro simples recheado de ação e salpica algumas pitadas de comicidade. Visando grande público, emula produções hollywoodianas, joga com os mesmos padrões de linguagem e estruturas de roteiro de filmes e séries de sucesso comercial.

Mas é notório que Lázaro Ramos ainda não domina o ofício da direção cinematográfica. São muitos os momentos em que sua narrativa se mostra frágil, como na sua sequência de abertura. A fita inicia com o anúncio de que a personagem Elenita, uma idosa negra, seria a primeira pessoa a receber uma indenização pelo tempo da escravidão. Ela vai até o banco e é esperada por uma multidão de jornalistas. Mas a porta do banco não abre e aí descobrimos que a tal indenização fora suspensa. Com a repentina negativa, os jornalistas correm para entrevistá-la, furando a barreira de proteção. O problema é que a sequência é toda mal orquestrada. No afã de deixá-la dinâmica, os picotes e multi pontos de vista acabam esvaziando qualquer empatia possível. Não há uma construção oportuna das forças de conflito dentro da própria cena, o que faz com que tudo soe um pouco falso. Problemas como esses, vez ou outra irão se repetir ao longo do filme. Mas há acertos também.

Lázaro Ramos fez um filme que parece estar calcado no afeto. Como símbolo disso, ele traz Dona Diva para atuar. É ela quem faz Elenita, a senhora da sequência inicial. Para quem não lembra, Dona Diva é aquela mulher que fez um discurso na Flip (Festa Literário Internacional de Paraty) de 2017 e colocou todo mundo a chorar. Ela não era uma convidada, ela estava na plateia e pediu o microfone ao fim de um debate. Sua fala, recheada de resiliência, transpassou os limites do apagamento costumeiramente destinado às mulheres pretas, viralizou, e ela acabou por se tornar um símbolo daquela edição. Lázaro Ramos, na ocasião, era um dos participantes da mesa intitulada “A pele que habito” e acabou, ele também, às lágrimas.

A luta antirracista fala alto nos seus 103 minutos, une uma enorme gama de atrizes e atores negros, dá visibilidade para discussões importantes e atuais. É provável que faça um tanto de rebuliço ao ser lançado, apesar de suas fragilidades e tropeções.

No núcleo narrativo central (o filme tem muitos personagens), estão Antônio Rodrigues (Alfred Enoch) e Capitu (Taís Araújo). Eles são um casal bem-sucedido. Ele é advogado; ela, médica. Ambos, portanto, carregam nas suas escolhas profissionais uma carga ética para com o outro e à sociedade. Ainda dentro desse mesmo núcleo tem André (Seu Jorge), um jornalista bonachão que escreve sobre questões raciais para um blog e vive de favor na casa do casal. Esses três personagens irão servir de síntese para luta antirracista que o longa apresenta.

Se no início vemos a indenização sendo cancelada, logo o governo passa a oferecer a “oportunidade” dos afrodescendentes “retornarem” para seus países de origem. Uma campanha publicitária é posta em ação, o que é visto por alguns dos personagens como uma piada (assim como a ultra direita foi uma piada há pouco tempo no Brasil). No entanto, pouco depois, chega a medida provisória. E partir da publicação da lei, qualquer pessoa com traços negros deve ser capturada e deportada. O palco é o Rio de Janeiro e, de forma muito inteligente, Lázaro Ramos fica no eixo Zona-Sul/Centro, não cedendo à tentação de voltar as lentes para as favelas cariocas. O que passamos a ver no filme, são policiais caçando pessoas pretas pelas ruas da cidade, um espelho do que aconteceu por séculos na África, quando os europeus arrancaram mais de doze milhões de pessoas de seus lares e o trouxeram à força para fazer trabalhos forçados nas Américas. Não indo para as favelas, ressalta-se para o espectador o tamanho da violência que ali é empregada. Isso porque a imagem da violência contra favelados já é rotineira e, infelizmente, banalizada no país.

Com tamanho horror se espalhando pelo país, surge a resistência e o debate mais caro ao filme: é justo empregar violência em um estado de exceção? Aqui Medida Provisória irá fazer um outro jogo de espelhos (não é à toa que o programa de entrevistas que Lázaro Ramos apresenta se chama Espelho) e irá comparar a violência estatal com a violência dos oprimidos. O filme, me parece, coloca tudo no meso lugar e defende posicionamentos pacifistas, mas o faz com um olho também no contraditório. Ou seja, ele não pretende encerrar a discussão, mas jogá-la para a sociedade. Talvez consiga.

Disponível nos cinemas a partir do dia 14 de abril.

Medida Provisória – 2020, FIC, 103min.

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