Kopenawa e Bolognesi criam obra-prima sobre cosmogonia Yanomami

Filme urgente e poético, A Última Floresta narra o cotidiano e os encantos da cultura presente na maior reserva indígena do país

Não é exagero dizer que A Última Floresta, documentário híbrido dirigido por Luiz Bolognesi, é um dos filmes mais importantes da atualidade. Com roteiro do diretor e também do xamã Davi Kopenawa, o longa-metragem nos põe dentro da vida e do imaginário Yanomami.

Recentemente, o Fantástico, da Rede Globo, exibiu reportagem sobre as mazelas em que diversas comunidades Yanomami enfrentam dentro da maior reserva indígena do país. Acontece que o garimpo está avançando mais uma vez sobre as terras que deveriam estar protegidas. Aliado ao descaso governamental, doenças se instalam entre o povo originário, principalmente a malária. Falta de tudo, inclusive cloroquina. A cloroquina, fartamente distribuída pelo governo federal em 2021 como bálsamo milagroso contra a Covid, é, na verdade, o medicamento eficaz contra a malária. Hoje vivem cerca de 30 mil Yanomamis na reserva e estima-se que 20 mil garimpeiros atuem também na região. O resultado são as doenças, desmatamento e contaminação dos rios. A caça sumiu e a pesca desapareceu, atestam os indígenas.

Não é a primeira vez em que tal tragédia se abate sobre esse povo. Na década de 1980, a corrida do ouro levou outros milhares de garimpeiros para a região. Epidemias se sucederam e cerca de 40% da população Yanomami veio a óbito. No filme, Davi Kopenawa lembra do passado como um alerta importante para que seus parentes não se esqueçam da ameaça que o homem branco representa para aquele povo e seu modo de vida. Kopenawa é um dos ativistas mais importantes pela preservação das florestas e dos povos originários, sendo reconhecido mundialmente pelo seu trabalho.

Em seu livro A Queda do Céu, Kopenawa diz: “Eu não tenho velhos livros como eles, nos quais estão desenhadas as histórias dos meus antepassados. As palavras dos xapiri (espíritos da floresta) estão gravadas no meu pensamento, no mais fundo de mim. São as palavras de Omama. São muito antigas, mas os xamãs as renovam o tempo todo. Desde sempre, elas vêm protegendo a floresta e seus habitantes. Agora é minha vez de possuí-las. Mais tarde, elas entrarão na mente de meus filhos e genros, e depois, na dos filhos e genros deles. Então será a vez deles de fazê-las novas. Isso vai continuar pelos tempos afora, para sempre”.

E é o que acontece em A Última Floresta, onde acompanhamos um pouco do cotidiano de uma aldeia. Vemos a lida diária com a pesca, o preparo dos alimentos e seus rituais. O filme é narrado pelo xamã, que nos conta também sobre suas crenças. Como os povos originários têm na contação de histórias um ponto central para perpetuação de sua cultura, aqui o cinema parece ser um grande aliado.

Bolognesi filma a lenda de Omama como ficção. Na lenda, dois irmãos se ressentem de solidão, já que o mundo não tem mulheres. Para procriar, copulam com suas próprias pernas. Até o dia que Omama pesca uma mulher das águas. Ela vive nos rios e ele fica muito feliz em saber que lá no seu mundo, ela não tem nem namorado nem pretendentes. Essa é a origem dos Yanomami, de acordo com sua tradição. A transição entre documentário e ficção é fluída e orgânica, assim como é a visão do mundo para os Yanomami, povo que, diferente de nós não indígenas, não traça linhas tão distantes entre o real do fantástico (falo mais um pouco sobre isso na crítica do filme A Febre).

No longa, Kopenawa narra histórias para seu povo, mas é a nós que o filme quer tocar. Com beleza e vagar, a belíssima fotografia de Pedro J. Márquez nos ajusta àquele lugar, àquele tempo que é outro. É um filme político sem panfletarismo ou gritos de ordem. Se o espectador se deixar levar pelo encantamento daquela cosmogonia, poderá imergir e voltar renovado, talvez até um pouco transformado.

Disponível para assinantes na Netflix.

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