First Cow é uma fábula sobre a civilização e sua violência

Faroeste de Kelly Reichardt conta de modo afetivo e minimalista a história da primeira vaca a chegar no Óregon, região no extremo oeste dos Estados Unidos

Nos primeiros instantes de First Cow: A Primeira Vaca da América, vemos uma jovem encontrando por acaso a ossada de duas pessoas que foram enterradas uma ao lado da outra. Seu cachorro achou um dos ossos, o que chamou sua atenção. A garota, então, retira o restante de terra que cobre os restos mortais e vislumbra os dois esqueletos. Aparentemente ela está no campo, há árvores por todos os lados e passarinhos em galhos próximos. A menina vê os ossos e os passarinhos, sorri e não sabemos o porquê. Corte. Na próxima sequência, estamos quase dois séculos no passado. Um grupo de mercadores cruzam quilômetros na floresta em busca de um forte, lugar que anseiam ter um pouco de conforto. Aqui a relação com os esqueletos já está clara. A história que agora começamos a acompanhar vai desembocar naquelas duas mortes.

Kelly Reichardt, diretora e corroteirista do longa-metragem, consegue algumas proezas nesse First Cow, conduzindo o enredo com grande economia narrativa, nos fazendo ver e pensar em aspectos do filme sem sublinhá-los. Reichardt, dona de uma extensa carreira (Wendy e Lucy, 2008) propõe um olhar antropológico singular sobre seus personagens e ainda revê o gênero faroeste com uma fita repleta de afetividade. A história é uma livre adaptação do livro The Half-Life, de Jonathan Raymond, costumeiro colaborador em seus roteiros.

Dentre o grupo de mercadores está Cookie (John Magaro), o homem encarregado de alimentá-los ao longo dos vários dias de viagem. Ele é um cozinheiro que não está bem habituado com a falta de ingredientes. Mas ali, na floresta, ele precisa caçar e colher, o que faz com esforço e pouca competência. Não demorará para aqueles homens passarem a odiá-lo.

Dias depois, vemos Cookie sozinho em um pequeno vilarejo. É quando ele reencontra King-Lu (Orion Lee), um chinês que migrou para os Estados Unidos a procura de riqueza. Cookie e King-Lu passarão a viver juntos, tanto por necessidade financeira como por verem um no outro o que lhes falta naquela sociedade. É um tempo de homens brutos.

O reencontro fortuito se dá em um bar, quando clientes brigam por desavenças infantis. É importante entender que esse é um filme sobre contrastes e sobre como a civilização e o conhecimento chegam ao extremo oeste dos Estados Unidos. Essa desavença, por exemplo, começa porque um dos frequentadores promove bullying a um outro presente. Pelo pouco que podemos entender, a vítima da zoação se diferencia dos demais pelo intelecto. Por ser mais culto, acaba sendo motivo de piadas.

A vaca, do título, é outro símbolo que aponta para as transformações que aquela região, o Óregon, passa a sofrer. Trata-se de uma vaca leiteira, a primeira a chegar na região. Ela veio a mando do comerciante chefe (Toby Jones) e é motivo de orgulho do homem, poderoso e rico o suficiente para tal façanha.

King-Lu, que passa os dias pensando em uma forma de enriquecer, convence Cookie a ordenhar a vaca em segredo, à noite. Com o leite, o cozinheiro poderá fazer bolachas e vendê-las na cidade. O plano dá certo e logo seus produtos ganham fama. Claro que a situação é insustentável e à medida que a tensão entre os roubos de leite e as vendas dos biscoitos aumenta, passamos a entender claramente que aqueles dois esqueletos mostrados lá no início são desses dois desafortunados.

A chegada da vaca é um símbolo da grande revolução que varreu o oeste norte-americano e, claro, de todas as Américas. De forma encantadoramente sutil, o filme nos fala de séculos de transformações, de violência, de apagamentos culturais, de exploração da natureza e dos homens. Em First Cow, aquela vaca mudou radicalmente a vida daquela dupla de amigos. Mas o que Kelly Reichardt está nos dizendo, de fato, é como tanto pode acontecer a partir de um ato tão pequeno e vil. Aquele sorriso que a garota dá nos primeiros minutos deve ser por ter percebido isso.

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