Drive My Car é simples na forma e profundo na palavra

Indicado a quatro categorias no Oscar, filme de Ryûsuke Hamaguchi acompanha diversos arcos narrativos, tudo imbuído e contaminado pelo clássico Tio Vânia, de Tchekhov

Texto atualizado às 20 horas.

Drive My Car é um filme muito simples e parte de sua beleza está justamente na clareza com que se apresenta, mas de modo algum isso deve soar como simplório. Adaptado de um conto de Haruki Murakami, seus personagens são carregados de tridimensionalidade e, com três horas de duração, o diretor Ryûsuke Hamaguchi forja com precisão os vários arcos narrativos que se abrem e fecham sem pontas soltas. Porque é na total inteligibilidade que o roteiro se apoia. Por isso a escolha pelo simples. E, também por isso, extremamente potente.

Essas características, aliás, podem ser apontadas também para a obra de Murakami, escritor de renome, autor de vasta obra, com romances como 1Q84 e Minha Querida Sputnik. Murakami é preciso na sua escrita, mas é também surreal, muitas vezes gostando de evocar imagens perturbadoras que deslocam o leitor do lugar comum. Em Drive My Car, Hamaguchi prefere deixar o perturbador para o campo imaginário. No enredo, Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) é um diretor de teatro casado com uma roteirista. É ela que muitas vezes evoca as imagens mais intensas e desconfortáveis da narrativa, muito embora elas sejam apenas faladas. É que o labor dela é justamente com a palavra e Hamaguchi tem uma boa compreensão do que deve mostrar e o que deve omitir.

Como diretor teatral, Yûsuke tem a função de dar imagem e som às palavras que estão no papel. Como espectadores, acompanhamos várias camadas do processo de montagem da peça Tio Vânia, clássico escrito por Anton Tchekhov em 1897, e somos jogados a perceber os paralelos que existem entre o texto russo e a vida desses personagens japoneses. O que de fato Hamaguchi nos diz é que Tchekhov é universal, que aquelas dores encenadas no final do século XIX ainda são as mesmas que carregamos hoje.

Todos os vários arcos que atravessam o filme têm como base a palavra. Se não no papel, falada como invenção (a mulher roteirista que declama suas ficções após o sexo), gesticulada (a atriz muda), confessada (o amante que narra o encontro), traduzida (o elenco da peça é de diferentes países). Há ainda o principal, a palavra a ser decorada. Yûsuke tem por hábito ouvir gravações em fitas cassete das peças em que trabalha. Sua própria esposa as grava para que, assim, ele possa estudar as cenas. O diretor ouve essas fitas enquanto dirige, mas ao viajar para um festival em Hiroshima, ele é tomado pela notícia de que não poderá conduzir seu próprio veículo, exigências da produção. Daí vem o título (“dirija o meu carro”, em tradução livre), quando surge Misaki Watari (Tôko Miura), a motorista contratada pelo festival. Ela irá levar o diretor para o hotel, o trabalho e suas reuniões. Ela ouvirá repetidamente as fitas com as falas de Tio Vânia. Até que, por fim, ela o conduz em suas próprias dores e redenções.

De tanto ouvi-lo, Misaki e Yûsuke são afetados pelo texto de Tchekhov, que acabam por viver suas transformações a partir das descobertas que o próprio teatro proporciona. Em outras palavras, a ficção se embrenha em suas próprias falas e atos, ajudando-os a, se não vencer suas culpas e tragédias, olhar para o futuro e ter alguma esperança, nem que seja no após morte. E é assim, também, que se encerra Tio Vânia, quando a personagem Sônia vaticina: Viveremos uma série longa, longa de dias, de longas noites; havemos de suportar pacientemente as provações que o destino nos mande; havemos de trabalhar para os outros agora e na velhice, sem conhecer descanso. E quando chegar a nossa hora morremos docilmente e na sepultura diremos que sofremos, que choramos, que passamos amarguras, e Deus terá  piedade de nós, e eu e tu, tio, meu querido tio, veremos uma vida luminosa”.

Disponível nos cinemas e a partir do dia 1.º de abril no MUBI.

Drive My Car – 2021, FIC, 179min.

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