Annette é musical soturno sobre o pop

O cineasta Leos Carax se une à banda Sparks para criar uma de suas obras mais extravagantes, um filme cantado inovador e diferente de tantos musicais do passado

No início era o verbo? Não para Leos Carax (Holy Motors, 2012), diretor do recém-lançado Annette. Para o longa-metragem, no início era o som, a canção. Filme musical, ópera soturna pop, Annette subverte muito do que o público está acostumado com os filmes cantados. Logo nos primeiros frames somos apresentados a um dos conceitos principais do enredo, quando vemos imagens estranhamente mais escuras do que o normal. Estamos em um estúdio de gravação e os ruídos (do plug da guitarra sendo conectado, do ajuste de microfone, da voz do diretor/técnico de som dando as primeiras ordens) fazem a imagem ganhar brilho e nitidez. É a música que dará luz a essa história; e Carax nos diz isso de um jeito muito sintético e bonito, inovador e poético até.

No aquário do estúdio está a banda Sparks, duo formado pelos irmãos Ron (teclado) e Russell Mael (vocal), além de outros músicos de apoio. O roteiro é de autoria do duo, já que os irmãos previam montar Annette como um espetáculo teatral antes de Carax embarcar no projeto. Leos Carax, ali como técnico de som, dá a fala inicial, perguntando aos intérpretes: “podemos começar?”. E eles cantam uma canção sobre o início daquela narrativa, uma introdução acerca das alegrias e tragédias que virão, e saem do estúdio e andam por aquelas ruas de Los Angeles agora bem iluminadas. Mas passam a ser acompanhados em caminhada e canto pelos atores principais, Adam Drive (como Henry McHenry), Marion Cotillard (como Ann Defrasnoux) e Simon Helberg (como o regente).

Henry McHenry é um comediante tosco e extremamente famoso. Faz piadas infames e de gosto duvidoso, mas é aclamado por sua plateia; Ann Defrasnoux é uma cantora lírica, igualmente amada, mas por um público muito distinto. Henry diz que mata sua plateia (de rir) e Ann morre todas as noites, no ato final de sua ópera (e assim ela salva seus espectadores). Eles se apaixonam e se casam. Algo como uma bela e a fera dos tempos de mídias sociais. Logo têm uma filha que batizam como Annette.

As músicas do grupo Sparks poucas vezes são simples de cantarolar. Geralmente tratam-se de melodias e arranjos mais sofisticados, com toques de jazz e que beiram óperas contemporâneas. Um bom acompanhamento para as imagens de um diretor como Carax, que de simples nunca teve nada. Seus filmes, que sempre têm uma relação muito coesa com a música, trazem como característica o bizarro e enredos pouco convencionais. Embora aqui os encadeamentos da história sejam dados de forma linear e clara, alguns símbolos são mais obscuros. A começar pela bebê Annette. Ela nasce e desde seu nascimento, é um boneco. Um boneco de madeira que é manipulado magistralmente nos bastidores. Um pouco da magia do filme, é que temos a noção de que aquela criança é um ser real, de carne, osso e emoções, muito embora vejamos claramente ser algo artificial.

O real e o artificial caminham de mãos dadas. É parte de qualquer musical o tom não naturalista, já que atrizes e atores rodopiam e cantam situações banais. Aqui, o que não é real é escancaradamente artificial. Em princípio, a própria Annette, mas logo veremos elementos que às vezes surgem como chromakeys quase toscos ou elementos em computação 3D um tanto fake. Pode ser um por do sol, uma luz de uma luminária, a paisagem da janela de um hotel. Um desses momentos mais emblemáticos, é quando a família Henry McHenry,  Ann Defrasnoux e a pequena Annette atravessam uma tempestade a bordo de um iate. Com elementos cênicos que lembram os primeiros efeitos especiais de Charlie Chaplin e Buster Keaton, vemos um barco que balança pela força de ondas claramente projetadas ao fundo. Contudo, o efeito é poderoso. A fita trará essa dualidade ao longo dos seus 141 minutos, como que lembrando de nos perguntar o que é real e o que não é nesse universo do show business, dos casamentos das estrelas, da idolatria e dos tabloides sensacionalistas.

Com um encerramento de grande potência, Carax une esses extremos (naturalismo x artificialismo) e é como se nos olhasse nos olhos. Há um desconcerto tamanho que nos faz entender porque lá no início, ainda nos créditos sobre tela preta, uma narração feita pelo próprio diretor nos dizia em tom de deboche: “pedimos completa atenção, se quiserem rir, cantar, aplaudir, chorar, bocejar, vaiar ou peidar, por favor, façam isso na sua mente.” E então a voz ordena que o público segure a respiração até o final e faça, assim, uma última e prolongada inspiração. Annette é um musical de terror psicológico que à medida que progride, deixa o espectador mais e mais incomodado. Até que no final, chega a hora de soltar a respiração. Um alívio, mas sem qualquer redenção.

Disponível para assinantes na Mubi.


O colunista entrará de férias. Cine Garimpo volta na segunda semana de janeiro com mais críticas de filmes incríveis e meio obscuros.

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