Alvorada documenta o ocaso do poder

Anna Muylaert e Lô Politi lançam filme sobre os 180 dias de afastamento de Dilma antes do impeachment

O cinema brasileiro já produziu um punhado de filmes sobre o golpe de 2016, sendo o Democracia em Vertigem, de Petra Costa, seu exemplo de luxo. Indicado ao Oscar de Melhor Documentário, a obra, porém, acaba por ser estranhamente pessoal e carregada de sentimentalismos. No espectro oposto está O Processo, de Maria Augusta Ramos. A experimentada documentarista corre atrás da história e se propõe a fazer um filme que dê conta do impeachment em sua totalidade, momentos depois do desdobrar dos fatos. É um misto de montagem de arquivo (imagens jornalísticas) e bastidores da equipe de defesa de Dilma Rousseff. Já Alvorada, de Anna Muylaert e Lô Politi, tenta focar no que não estava sendo visto, observando a presidenta justamente durante os 180 dias de afastamento até seu impedimento em definitivo. Sendo lançado só agora em 2021 e com tempo para experimentar uma montagem coesa, Alvorada nasce como a melhor das recentes fitas sobre nossa combalida República.

Não há novidades estéticas no documentário. Ao contrário, trata-se de um filme majoritariamente observativo, como tantos outros, mas que acerta em muito em olhar para o entorno de sua personagem principal. O Palácio da Alvorada é a residência oficial da Presidência e há toda uma gigantesca engrenagem girando para manter o prédio funcionando. São faxineiras, cozinheiras, motoristas, além de assessores pessoais e mais uma infinidade de trabalhadores que diariamente se dedicam ao prédio e sua então hóspede. Muylaert e Politi conseguem uma excelente entrevista com Dilma, conversa que é diluída ao longo da obra. No entanto, o mais interessante de tudo é como são observados esses funcionários e suas relações com o poder ou, na verdade, com o ocaso do poder.

É uma visão melancólica de fim de governo, mas sem chantagem emocional. É um retrato digno de uma presidenta que foi afastada de cabeça erguida, sem esmorecimento ou, nas palavras da própria Dilma, sem desequilibrar. Ela fala longamente sobre o assunto, sobre como sempre foi muito firme e como precisou, inclusive, ser empática o suficiente para entender que nem todos são como ela. Esse equilíbrio foi visto por toda a nação quando ela falou por 14 horas na última sessão do Senado antes da votação final do impeachment. Essa sequência é brilhantemente filmada e montada em Alvorada, onde vemos o discurso sendo transmitido por televisores espalhados pelos diversos ambientes do palácio, com funcionários atentos às falas e aos afazeres.

Talvez por ter sido rodado no calor dos fatos, Alvorada padece de apuro técnico na fotografia e na captação de som. É perceptível, também, a falta de estrutura, com uma equipe minúscula para dar conta do grande entra e sai de autoridades e políticos. O resultado é uma câmera incerta que, se por um lado atrapalha a fruição da obra, em pouco diminui sua qualidade final. Aqui está um exemplo de quando a mensagem importa mais do que o meio.

A dupla de diretores conseguiu produzir um importante documento histórico, para além de um documentário. Aliás, grande parte do filme é dedicado a observarmos a composição de uma carta que Dilma Rousseff escreve juntamente com seu pessoal para ser entregue aos senadores. É uma estratégia narrativa interessante, que nos envolve na confecção daquele documento e mostra que há muito de artesanato na política. Assim como no cinema ou em qualquer tipo de narrativa.

Alvorada

2021, DOC, 90min, Disponível em streaming na Net Now e para compra no Google Play.


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