O direito à cidade e os riscos da Resolução CGSIM 64

Resolução foi editada sem qualquer debate público, salvo o “suporte técnico” da entidade representativa das grandes construtoras

O artigo 182 da nossa Constituição prevê que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

O processo de globalização em curso desde os anos 80, junto com as transformações do sistema capitalista como um todo, à falência do planejamento centralizado e ao fim dos padrões tecnológicos dominantes desde o pós-guerra, e associado ao ideário político-econômico neoliberal, estabelecem no Brasil as grandes linhas em que passam a se inspirar as ações que visam às reestruturações econômicas e territoriais.

É nessa toada que chegamos à metade do ano de 2021, com um governo decadentemente neoliberal, e que deseja o desmonte total do Estado brasileiro, inclusive nas políticas urbanísticas.

O principal exemplo desta preocupante situação foi a publicação da Resolução CGSIM n.º 64, do Ministério da Economia, que trata da “classificação de risco no direito urbanístico”. Vale destacar que esta Resolução, de 11 de dezembro de 2020, concebida pelo Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios, com base na Lei de Liberdade Econômica, foi editada sem qualquer debate público, salvo o “suporte técnico” da entidade representativa das grandes construtoras.

A Resolução CGSIM n.º 64, de possível inconstitucionalidade, invade matéria relacionada ao ordenamento territorial e ao controle do uso e ocupação do solo, ambos de competência dos municípios, como preconiza a Constituição Federal. Além disso, essa invasão se consuma por meio de instrumento jurídico inferior (Resolução versus Lei Federal), num flagrante desrespeito de normas do Direito.

O Ministério da Economia igualmente extrapola ao formular o conceito de “risco no direito urbanístico”, a partir do qual as obras particulares passam a ser classificadas em níveis de risco. O temor da sociedade fica por conta do afrouxamento do licenciamento de obras classificadas como de “baixo risco”.

As obras do tipo A são aquelas de risco considerados “leves, irrelevantes ou inexistentes”, mas a Resolução não especifica como o ministério chegou objetivamente a tal avaliação. Elas passam a ser dispensadas do ato público de licenciamento, ou seja, não será necessário sequer qualquer registro ou ato oficial. Bastará o responsável preencher uma “autodeclararão” em sistema online integrador nacional.

Na categoria tipo B, estariam as obras “com risco previsível e conhecido, mas ainda assim baixo”. E, de novo, a Resolução não explica como o ministério chegou objetivamente a tal conclusão. “Alvará de construção” e “Habite-se” seriam liberados automaticamente, também de forma online, mas nesse caso com apresentação de certos documentos (entre os quais o Registro de Responsabilidade Técnica – RRT) e o pagamento de uma taxa do meio digital. Na categoria tipo A não haveria pagamento de taxa.

Com 44 artigos, oito anexos com diversas tabelas, formulários e check-lists, além de conceitos de difícil compreensão como “estruturas” Alpha, Beta, Gama e Delta, a Resolução CGSIM n.º 64 está longe de ser um instrumento facilitador para o cidadão. A comprovação está no próprio texto, que cria a figura do “procurador digital de integração”, uma nova espécie de despachante para prestar serviços aos particulares interessados na dispensa do Alvará de Construção e do Habite-se. Isto torna falacioso o argumento de que não haverá custo.

A Resolução n.º 64, proposta do Ministério da Economia para simplificação do licenciamento urbanístico integrado, foi um dos temas da Plenária do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) do último dia 30 de abril. O CAU/BR entendeu que o único caminho possível para sua atuação em relação a esta matéria, seria apresentar soluções para mitigar as distorções da proposta original.

Sendo assim, o Conselho aproveitou a oportunidade que surgiu para discutir, em nível nacional, novas ferramentas e possibilidades de melhoria do planejamento urbano. Entre elas estão agilidade, segurança, transparência e responsabilidades compartilhadas nos processos licitatórios; instituição de carreira de Estado para nossos arquitetos analistas; e fomento a Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social. Esta última se viabilizaria com a criação de departamentos de projetos nos órgãos governamentais para atender os cidadãos menos favorecidos, nos moldes de um médico do SUS, ou um defensor público, popularizando nossa profissão.

Em síntese, o CAU/BR propõe: um licenciamento simplificado; os enquadramentos de edificações em função de sua tipologia e riscos de uso; a liberação da Licença de Obra e Habite-se ocorrendo como serviço integrado nas diversas instâncias do poder público; que o RRT (de arquitetos) e a ART (de engenheiros) sejam suficientes para confirmar as responsabilidades dos profissionais e certificar sua habilitação; que o licenciamento declaratório, se ofertado, seja seguro e completo; e a não privatização do Mercado de Procuradores Digitais de Integração Urbanístico de Integração Nacional.

É preciso reafirmar que o licenciamento urbanístico deve estar a serviço do planejamento urbano e aos interesses coletivos (artigo 182 da CF). Isto é urgente para garantir o “Direito à Cidade”, e reforçar as estruturas municipais de licenciamento com equipamentos, profissionais qualificados e participação popular.


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