Viramos um país em que a bandeira é sagrada, mas vidas são descartáveis

Símbolos nacionais são importantes. Mas nossa ordem de prioridades anda estranha

Colin Kaepernick começou anos atrás um protesto silencioso que para muitos foi chocante. Jogador de futebol americano da principal liga dos EUA, ele se ajoelhava toda vez que o hino nacional tocava antes da partida. Uma maneira de mostrar as queixas dele (e dos negros em geral) contra o modo como o país os trata.

Na seleção francesa de futebol, há diversos atletas, principalmente vindos de antigas colônias na África, que se recusam a cantar um trecho do hino, considerado xenófobo – atitude importante principalmente num momento em que os Le Pen têm apoio de uma quantidade gigantesca de franceses brancos contra a imigração.

Símbolos nacionais são importantes: criam uma união entre as pessoas e fazem compreender que, de certa maneira, estamos todos no mesmo barco. Nascemos num mesmo território, somos governados pelas mesmas pessoas, o destino do país influencia na vida de cada um de nós. Mas símbolos nacionais são só isso: símbolos.

Na semana passada, houve um protesto em Curitiba que terminou com a queima da bandeira do Brasil na frente do Palácio Iguaçu. Uma afronta à lei? Sim. E desnecessária, uma vez que expôs à crítica todos os manifestantes e deu discurso para quem quer afirmar que quem é contra Bolsonaro é vândalo, é arruaceiro.

Ao contrário do que vemos com tantos outras afrontas à lei, a descoberta do autor foi rápida. Em uma semana, o sujeito de máscara foi identificado, a Polícia deslocou sua inteligência, seus homens e seus equipamentos para ir atrás dele e logo o sujeito estará respondendo criminalmente.

Em 2013, fiz com outros colegas uma série de reportagens que mostrava que em apenas 4% dos casos um homicida chega a ser condenado pela Justiça depois de matar alguém m Curitiba. Outros 96%, naquele momento, estavam impunes. Crimes que em geral ocorrem na periferia e para os quais o Estado não dá lá tanta importância.

Símbolos nacionais deveriam servir para unir. No momento, no Brasil, a bandeira e as cores nacionais foram apropriadas por uma facção política, por um grupo de radicais que colocou no poder um apologista da ditadura e de torturadores. Um governo que exclui, que minimiza o sofrimento, que nega a existência do racismo, que fornece combustível para misóginos e homófobos.

Queimar a bandeira é uma reação um tanto infantil, além de ser contra a lei. Não deveria ser feito, especialmente por inflamar ainda mais os ânimos já insuportavelmente acirrados do país.

Mas é de se pensar se as nossas prioridades estão certas. Por que não descobrimos quem mandou matar Marielle, por que Ribas Carli está solto, por que é possível incentivar a tortura – por que toleramos tudo isso, mas nos chocamos com um protesto simbólico que só causou danos materiais?

A bandeira é importante, mas é sintoma de algo errado quando a colocamos como algo sagrado, ao mesmo tempo em que tantas vidas são vistas como descartáveis.

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