Vereador é processado e tratado como moleque por chamar colegas de trambiqueiros

Renato Freitas

Nesta semana a Câmara de Curitiba anunciou o que parece ser uma piada: um vereador está sendo alvo de um processo que pode levá-lo à cassação por criticar seus colegas. Renato Freitas (PT) está ameaçado de perder o mandato porque chamou vereadores ligados a algumas igrejas de trambiqueiros – falou com todas as letras que essas igrejas se beneficiam da miséria alheia.

Em qualquer democracia decente do mundo, Renato poderia falar isso e muito mais. É para isso que existe a imunidade parlamentar: vereadores, deputados e senadores estão ali, entre outras coisas, para denunciar, contestar, mostrar coisas que de outro jeito não seriam descobertas. Dizer que a Câmara de Curitiba passa longe de ser democrática é um pleonasmo, mas vale explicar mais de perto.

Os vereadores de Curitiba – assim como acontece na maior parte das Câmaras do país – gostam de ficar no seu quentinho, sem ser incomodados. Recebem um bom salário, têm seus não pouco privilégios e, claro, lutam para não perder tudo isso. O diabo é ter que depender do voto do populacho a cada quatro anos… Mas enquanto não se resolve isso de outro jeito, eles se viram com o que têm.

O melhor modo de manter o status é não ser atacado. E o modus vivendi que os políticos locais implantaram já há décadas é uma espécie de pacto múltiplo de não agressão. Trambiques? Bom, podem até existir. Mas pra que mexer nisso? Daqui a pouco vão começar a me criticar também.

A pasmaceira, porém, depende do acordo amplo, geral e irrestrito do plenário. E sempre há alguns chatos estridentes para romper o pacto. Renato Freitas, porém, levou o jogo a um novo nível. Chiou e estrilou em seus poucos meses de mandato a ponto de virar o alvo favorito do bom-mocismo interesseiro.

Ao criticar os pastores, Renato abriu a caixa de Pandora. E o que saiu de lá não foi bonito.

A resposta dos evangélicos e de seus aliados foi não apenas antidemocrática: foi truculenta e preconceituosa. Renato é negro e foi tratado não como vereador, mas como um moleque que deveria ser domesticado por seus pares. Como se o que lhe sobra de cabelo afro lhe faltasse de educação – uma ironia, já que se trata de alguém com um nível de educação formal muito acima da média da Câmara.

O vereador foi chamado de “menino” pelo líder do prefeito. Não é algo novo. Nos Estados Unidos, os brancos chamam frequentemente os negros de “boy”, mesmo depois de adultos, de velhos, independente do cargo. Como se fossem seres inferiores que, mesmo maduros, não atingissem a maioridade intelectual.

A tutela do vereador e de seu discurso, a tentativa de censurar a crítica ao que for (e não, a religião num Estado laico não fica fora do alcance da crítica) é uma vergonha para a Câmara. Mais uma vergonha, depois de tantas já causadas pelos tantos Derossos e seus múltiplos congêneres.

Seria uma delícia para a democracia ver os vereadores se chamando diariamente de trambiqueiros. Estaríamos muito mais perto de um debate político produtivo e sincero. Mas não, o exemplo que se quer ali é outro.

Quem gosta de futebol conhece a história: foi em 25 de junho de 1982, o famoso “jogo da vergonha”. Alemanha Ocidental e Áustria jogavam pela Copa do Mundo na Espanha e, sabendo os resultados do grupo, perceberam que o resultado construído com dez minutos de jogo colocava os dois times na fase seguinte, eliminando a Argélia no saldo de gols. Dali em diante, o público de 41 mil pessoas no estádio (e os milhões que acompanhavam pela tevê) assistiram à partida mais chata de todos os tempos.

Na Câmara de Curitiba a coisa funciona assim em tempo integral. Os vereadores decidiram que tornar o jogo morno é a melhor maneira de perpetuar seus privilégios. Todos sabem dos telhados de vidro uns dos outros, mas ninguém joga pedra por medo de ser o próximo alvo. O eleitor é quem fica na situação dos espectadores da partida: pagam um espetáculo chocho e que não cumpre sua função.

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