Se a economia fosse tudo, a escravidão faria sentido

Só vale a pena irmos atrás de prosperidade se respeitarmos certos limites. Especialmente, os limites da decência

O Uzbequistão tinha um problema quando a União Soviética derreteu, 30 anos atrás. Um problema econômico. A receita do país dependia das exportações de algodão. Mas sem os russos para bancar o maquinário, os fazendeiros não tinham colheitadeiras, e não valia a pena plantar.

O presidente do país resolveu isso com duas canetadas. Na primeira, determinou que toda fazenda do país deveria reservar uma certa porcentagem da terra para plantar algodão. Sim, mas sem as máquinas, quem iria colher tudo aquilo? Veio a segunda ideia genial: por que não usar toda aquela mão de obra barata que estava parada nas escolas?

Sim: o Uzbequistão determinou que toda criança em idade escolar deveria passar o mÊs de setembro em fazendas do país colhendo algodão. Os maiores tinham uma cota maior. Os menores podiam pegar mais leve. Para não parecer trabalho escravo, inventou-se um pagamento de centavos por quilo colhido.

Quem vivia no campo tinha a vantagem de dormir em casa. Mas os habitantes da cidade eram levados par algum lugar distante onde viviam longe da família, normalmente dormindo sobre feno por um mês, em galpões ao lado de animais. Mas o que importava era a economia, certo?

Alguém já disse que não é difícil ganhar dinheiro se dinheiro for a única coisa que te importa. O ponto é que para nenhum de nós é assim. Mesmo quem se importa muito com dinheiro se importa com outras coisas. Ética. Pessoas amadas. O risco de ir para a prisão.

Se a economia fosse tudo que importa, faria sentido ter ouvido os conservadores brasileiros do século 19 e mantido a escravidão. Se dinheiro fosse tudo que importa, Daniel Defoe teria razão ao ficar fascinado com o fato de que toda criança inglesa no século 18 já podia ganhar um dinheirinho aos quatro anos de idade, trabalhando em condições hoje inaceitáveis.

Nós abolimos a escravidão. Nós abolimos o trabalho infantil. Nós colocamos limites àquilo que se pode exigir de um trabalhador: garantimos férias, décimo terceiro, limite de carga horária, equipamentos de segurança.

É que dinheiro, sabe toda sociedade civilizada, não é tudo. Economia não é tudo que importa. E só vale a pena irmos atrás de prosperidade se respeitarmos certos limites. Especialmente, os limites da decência.

O presidente não entende isso. Seus seguidores, em carreatas insanas pedindo que a economia seja colocada acima da vida humana, não entendem isso. Muitos prefeitos não entendem isso.

Mas eles estão na contramão da história. E não vão transformar o Brasil num novo Uzbequistão: aqui, ainda acredito que teremos sensatez para que nossas crianças possam ir dormir sem colher algodão para o Estado ou sem serem contaminadas por um vírus que poderia ter ficado fora de suas casas se fôssemos todos civilizados.

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