Quem deixa faltar vacinas merece meu ódio

Por um momento, preciso deixar claro o que sinto por essas pessoas

O trabalho de um jornalista muitas vezes é manter a calma. Para fazer bem o teu trabalho, você não pode deixar que os teus instintos te dominem – é preciso controlar os nervos para não estrangular o entrevistado pedante, para não chorar ao conhecer o menino faminto, para não rir diante da empáfia do denunciado.

Se você se deixa tomar pela sangue quente, tuas matérias viram panfletos; você bem sequer consegue ter a paciência para ir atrás das informações necessárias, que te ajudariam a entender de verdade o caso. E aí começam as injustiças, os erros, as fantasias ideológicas. Não dá pra relatar os fatos ao mesmo tempo em que que você joga um coquetel molotov.

Mas eu aprendi também uma coisa, nessas duas décadas e pouco de profissão. Há alguns poucos momentos – poucos mesmo – em que você não pode deixar a capa de civilização te impedir de sentir algo. Porque senão você mata a humanidade dentro de você. E também não dá pra ser jornalista sem ser humano.

Eu, pessoalmente, peço desculpas aqui para sair do papel de homem calmo e cordato por um instante, prometendo voltar ao normal em breve. Mas, só agora, vou me permitir dizer com todas as letras que estou sentindo ódio. Raiva? Não, a palavra é fraca. Sinto ódio mesmo. Ódio visceral, ódio que não quer a morte, mas que quer punição imediata e exemplar.

Sinto ódio das poucas pessoas que estão em posição de evitar o aumento desse massacre que vitima as pessoas a meu lado e que se recusam, por birra, burrice ou pior, por interesse, a fazer o que devem.

Sinto ódio de quem deixa faltar vacinas a idosos, de quem se recusa a fornecer o básico para que as pessoas enfrentem uma pandemia, de quem menospreza a vida humana em nome de um projeto político

Sinto ódio do presidente, do ministro da Saúde e de todos os seus asseclas que colaboram para a matança de centenas de milhares de pessoas no país, principalmente agora, com vacina, quando isso é evitável.

Sinto ódio de quem é conivente com isso: os ministros, governadores, prefeitos, deputados, senadores que deveriam estar surtando, tocando o horror na imprensa, na porta do Palácio, defendendo as pessoas e as vidas, mas que preferem a inércia covarde e molenga dos omissos.

Sinto ódio dos mentirosos que defendem essa gente na imprensa e na Internet a soldo, dessa laia que infesta as redes sociais com suas falácias estúpidas.

Sinto ódio de quem podia parar isso e não para. Sinto ódio de quem com seu voto ajudou a chegarmos aqui e que mesmo diante do caos, da tragédia, do pânico e da dor se recusa a reconhecer o óbvio, a reconhecer o erro.

Sinto ódio de mim mesmo por minha impotência e por não saber como evitar que as pessoas continuem se contaminando e sofrendo. E chego quase a sentir ódio de meu país.

Mas isso vai passar. Um mandato presidencial tem fim. Os piores horrores têm fim. E a maioria das pessoas vai chegar bem ao outro lado dessa tormenta, e vamos nos reerguer, apesar de tudo.

Por ora, nos resta fazer cada um a sua parte. Nos protegermos, protegermos os nossos e torcer. Mas há mais uma coisa: precisamos gritar. Porque o ódio por certas pessoas e condutas, numa hora como essa, nos tornará mais humanos.

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