“Por que os negros que escravizamos não nos amam?”, pergunta o pobre homem branco

Antonio Risério e Leandro Narloch não se conformam que os negros se mostrem tão ingratos com seus antigos senhores

No longa-metragem dos Simpsons, Homer se vê no meio do Alasca, sendo puxado por cães em um trenó. Estúpido que é, chicoteia os cachorros não só quando precisa que eles corram, mas o tempo todo. Bate neles para correr, pular e até para dormir. Quando finalmente solta os cães de noite, eles obviamente avançam no dono e depois vão embora. Homer, triste, se pergunta: “Por que tudo que eu chicoteio me abandona?”

Essa parece ser a dúvida por trás dos questionamentos de gente como Antonio Risério, Leandro Narloch e Demétrio Magnoli. O que eles estão perguntando, tristes e indignados é: por que os negros que nós brancos chicoteamos por séculos agora parecem se voltar contra nós?

O episódio mais recente foi um artigo de Risério na Folha de S.Paulo em que o antropólogo diz que negros também têm lá seu racismo. O texto foi tão patético e desastrado que causou uma rebelião dos próprios jornalistas da Folha, que assinaram um manifesto contra esse tipo de publicação – isso sem contar as dezenas de outras manifestações contra o artigo.

Risério pinça casos aqui e ali para mostrar preconceito de alguns negros contra outras etnias, como um caso nos EUA em que negros teriam feito boicote a um comércio coreano. Bom, negros, talvez para surpresa de muitos, são pessoas, e podem errar. Pode ser que nesse caso os negros tenham sido de fato racistas.

Isso nem de longe quer dizer que haja um racismo generalizado de negros contra não-negros. Assim como os casos de negras que conseguiram ganhar uns tostões na época da escravidão não diminui o trauma de séculos de opressão, pobreza e mortes – ao contrário do que dão a entender Risério e seu Smithers, Leandro Narloch.

O que acontece é que tanto nos Estados Unidos quanto aqui os pretos foram vítimas de uma das maiores injustiças do mundo Ocidental. Sequestrados, traficados, vendidos e tratados como propriedade, viveram como sub-humanos por mais de um quarto de milênio. Gerações de gente estuprada, assassinada, mutilada, moída no trabalho das lavouras, das minas e dentro de casa.

E depois da escravidão, veio a pobreza. Libertos sem treinamento profissionalizante, sem qualquer reparação e (pior) ainda como alvos de um preconceito generalizado, os negros se viram condenados, e em grande medida se veem ainda hoje, 134 anos depois do fim oficial das senzalas, a indicadores sociais absurdos – coisa que na vida real se traduz em sub-moradia, subalimentação e subemprego para uma porcentagem inacreditável da população negra.

Humanos que são (e eis sempre um dado importante de se lembrar), os negros uma hora se rebelam. Veem que estão sendo mantidos por gerações numa situação que não fizeram por merecer. Sentem diariamente na pele o desprezo dos brancos; percebem que também seus filhos correm risco imenso de perpetuar esse ciclo. E se revoltam.

Por vezes essa rebelião levou a fatos trágicos, como no Haiti. Em outros lugares, como em Oakland, levou à formação de grupos revolucionários. Em várias partes dos Estados Unidos, chegou a gerar motins e tumultos. Há quem veja nisso um fato social relevante – e há os Risérios, os Narlochs, que veem nisso apenas uma injustiça da parte dos ingratos negros. E isso que aqui no Brasil, por incrível que pareça, os negros jamais fizeram uma verdadeira rebelião.

Nossa sociedade está acostumada a colocar a culpa na vítima. A mulher foi estuprada? Certamente algum colunista branco estará lá para dizer que ela bebeu demais ou se comportou como não devia. O sujeito é pobre? Haverá economistas brancos para dizer que o país gera oportunidades, e ele é que deve ser preguiçoso. Morreu baleado pela polícia, mesmo desarmado? Alguma coisa deve ter feito…

Os Risérios e Narlochs seguem nessa linha. Os negros apanharam por séculos, são mantidos em condições sub-humanas, vivem desprezados e vítimas de preconceito – mas quando se enfurecem por isso, quando tentam lembrar ao mundo que a culpa não é deles, que a culpa é, sim, de um sistema majoritariamente branco – nesse caso ELES é que estão sendo racistas.

Narloch escreveu em seu último texto “polêmico” sobre racismo que o movimento negro deveria se ocupar mais de exaltar as negras minas que fizeram pequenos patrimônios no século 19 – ao invés de ficarem com essa choradeira sobre opressão. Risério e Narloch querem isso: ser coaches do movimento negro, ensinar a eles como se comportar “decentemente” quando debaixo da chibata.

O “racismo” apontado por Risério é uma piada de mau gosto não só por ignorar que se trata de uma reação justa à opressão cotidiana, mas também porque omite que os negros não têm condições de causar os mesmos males que lhe são impostos.

Duvido que Risério algum dia tenha sido expulso de uma loja pelo segurança negro.

Duvido que Leandro Narloch tenha perdido um emprego porque o RH, comandado por um negro, não aceitava gente de olhos claros.

Duvido que um dos dois tenha visto seu filho ser zombado e reduzido a piada numa turma majoritariamente composta por crianças negras.

Os brancos, no Brasil, estão acostumados a pensar que podem tudo: não só puderam matar índios, torturar negros e sair ilesos de tudo isso como agora acham que podem também impor a suas vítimas o que elas devem pensar sobre tudo isso. Feitores de escravos mortos, querem ser professores de bom comportamento dos negros que sobreviveram. E ainda acham estranho que alguém queira lhes dizer que basta.

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