Perdão Curitiba, por deixarmos morrer os teus filhos

Há gente sofrendo. É o preço escolhido para que o lazer e consumo sigam a todo vapor

Curitiba, o dia de pagar a conta por teu desleixo chegou, e isso vai custar centenas de vidas. Há oito meses a peste se abateu, mas quem devia cuidar dos teus achou por bem protelar. Por receios e pudores, deixaram que a situação se deteriorasse a olhos vistos, sem que ninguém fizesse nada.

Houve tempo para preparação: meses antes que o primeiro filho teu fosse infectado. E mesmo então comemorava-se: a primeira morte não vinha. Fingíamos que estava tudo bem, apesar dos avisos que vinham do mundo todo.

E logo o que todos sabíamos que ia acontecer começou: um, dois, três e aos poucos as pilhas de cadáveres vítimas da peste foram aumentando (ainda hoje, quando a situação é bem mais grave, há quem tenha mais medo de frases do que da realidade, mas é preciso dizer: são pilhas e pilhas de cadáveres.)

Aqueles que deviam cuidar dos teus foram novamente tímidos. Não queriam desagradar, talvez. E por pudor, ou em nome da amizade e dos negócios, foram deixando as mortes acontecer. Criaram mais espaços para que as pessoas definhassem agonizantes, mas não fecharam a cidade – única medida para evitar a agonia.

Acostumamos a ver as pessoas morrendo. Uma por dia. Depois cinco. Depois dez. Agora já são quase vinte os teus filhos que morrem diariamente. Morrem em número cada vez maior de hospitais – porque esse foi o caminho escolhido, ampliar os locais onde morremos. E morrem sozinhos, sem ter quem lhes segure a mão, para evitar novos contágios: enfim, à beira da morte, as autoridades produzem o isolamento.

Mas nada do que aconteceu se assemelha ao que vem agora, Curitiba. Agora não há mais leitos. Não há mais médicos. Não há mais enfermeiros. Teus filhos transbordam nos hospitais, nas UTIs, nos necrotérios. E nem assim os que deviam cuidar dos teus acordam, Curitiba.

Falam em levar teus filhos para hospitais a centenas de quilômetros: já não há mais espaço para agonizantes em Curitiba. E mesmo assim os que deviam cuidar de ti cuidam apenas de festas e luzes enquanto morremos.

Este será o teu ano mais triste em um século, Curitiba. Nunca viste tantos de teus filhos tão tristes, nunca tantos morrendo. E nunca viste tamanha falta de ação daqueles que poderiam ter impedido essas mais de 1,6 mil mortes – e como saber quantas serão, Curitiba.

Há gente perdendo avós, pais, mães, irmãos, amores. Há gente sofrendo. E esse é o preço escolhido para que teus templos de lazer e consumo sigam a todo vapor. A dor não comoveu a quem tinha de comover. E seguimos adoecendo e morrendo.

Perdão Curitiba. Pois aqueles que dizem “Viva” diante de teu nome, na verdade, estão te deixando morrer.

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