O Complexo Médico Penal por dentro

Preso da Lava Jato elogia instalações do CMP em carta anônima, mas nega existência de privilégios

Galeria 4 do CMP, onde dois presos foram mortos em 2018: violência em outras alas assusta presos da Lava Jato.

“Um olhar de quem há três anos vive por entre os órgãos internos desta entidade que tanta influência exerce na minha vida. E vice-versa.

Não temos conhecimento do sistema penitenciário em geral, praticamente o mesmo conhecimento do público em geral que adquire informação pela TV aberta. Mas desde o início de nossa convivência aqui percebemos que o CMP é diferente.

Leia mais:
Cartas inéditas revelam cotidiano de tédio, fé e medo de presos da Lava Jato
Insônia, pressão alta e sentimento de injustiça

Primeiro porque se chega aqui e se instala experimentando decepção. A recepção e as primeiras instruções não se dão diferente do que se pode esperar de um estabelecimento prisional, a atitude cordata esperada para qualquer lugar se confirma. Aos poucos se observa que, por ser uma unidade com função médica de atender presos também de outras unidades, temos a sensação de que, com os profissionais e procedimentos aderentes à área de saúde, há um cuidado mais humano.

Os presos mais graduados se organizam em grupos para fazer a limpeza periódica das celas dos presos que não tinham este cuidado. O cheiro da galeria mudou.

É na vivência na galeria em que somos alojados que se experimenta a maior diferença. Os presos da Lava Jato foram alocados na 6ª galeria, uma ala já originalmente mais separada no presídio por policiais custodiados, guardas e militares, e ainda condenados por crimes sexuais que normalmente requerem um cuidado maior de segurança em relação à população carcerária em geral.

Ao longo do tempo, com o aumento no número de presos de crimes financeiros, com outras operações além da Lava Jato, a população da 6ª galeria foi mudando de perfil. A involuntária elevação do nível de educação obviamente acarretou uma nova forma de convivência, mesmo com os presos que cumprem medidas de segurança, muitos com algum distúrbio mental qualquer.

Talvez o reflexo mais visível tenha sido a higiene da galeria. Os próprios presos mais “graduados” se organizam em grupos para fazer a limpeza periódica das celas dos presos que não tinham este cuidado. Notório foi que, paralelamente, o “cheiro” da galeria mudou. O ambiente de limpeza é patente.

Também a interlocução com a administração pode experimentar um relacionamento mais elevado e reivindicações puderam ser submetidas, algumas aceitas, outras não. Nunca se tratou de privilégios, mas de aspectos que são abarcados pela legislação.

Há de se considerar que a relação com os agentes penitenciários é humana e profissional. Eles fazem o seu trabalho e procuram entender as necessidades específicas de cada custodiado dentro do possível. Não se apresentam reclamações neste sentido.

Imagem borrada de uma das cartas a que o Plural teve acesso.

O resultado de tudo isso é que a 6ª galeria é uma ala sem problemas importantes, a sua população tem bom comportamento, tem urbanidade na convivência e as diferenças que podem ocorrer em qualquer grupo são resolvidas com civilidade.

Não há consumo de drogas na 6ª galeria, nunca houve agressão física e ocorrências pontuais sempre foram sem gravidade. Há uma ambiência de cooperação entre os presos e as pessoas procuram voluntariamente ajudar umas às outras, seja com utensílios materiais ou com o compartilhamento de conhecimento. Parece que todos nós aprendemos a viver com menos e com um pouco mais de altruísmo. Pelo menos há aspectos aproveitáveis da experiência para a vida de cada um.

Este escrito procura ter uma abordagem positiva dentre as coisas que se encontram num ambiente penitenciário. Temos a nossa especificidade na custódia, mas também há a nossa parcela para construir o que melhor for possível. Se o homem é produto do meio, também é verdade que o meio é produto dos homens que o constituem.

Temos nossa parcela para construir o que melhor for possível. Se o homem é produto do meio, também é verdade que o meio é produto dos homens que o constituem

Por óbvio, nem tudo são flores, muito ao contrário. Não temos contato com as outras galerias do CMP, mas sabemos que a sua realidade é mais próxima da média do sistema penitenciário nacional. Não é incomum termos notícias de ocorrências de agressões e até mortes, de uso de entorpecentes, celulares, tentativas de fuga e a presença do crime organizado. Este aspecto nos traz alguma insegurança e sabemos do cuidado adicional que a direção procura ter conosco em relação a estas circunstâncias.

E, também, por ser o CMP uma unidade do sistema, compartilha de muitas das suas discriminações. Quando vamos tomando conhecimento da legislação que reje esta relação Estado-custodiado, nos damos conta que a lei maximiza o que é permitido ao preso desde que não interfira na privação da liberdade, que é a sua punição. Estou a generalizar um pouco para desenvolver o raciocínio, mas não estou longe da verdade e estou a falar dos direitos do preso.

Quando se entra no sistema penitenciário, tudo lhe é proibido. Há uma cascata de regrinhas adicionais, que não têm aparo na legislação. O CMP também sofre desse inconsciente coletivo de tudo restringir e seus agentes nem sabem o porquê. Chega a ser autoritário e abusivo. Falo, além dos deveres, dos direitos do preso, que estão especificados na Lei de Execução Penal. Desde a leitura do periódico que vende na banca da esquina, de um estudo por correspondência, até o contato pessoal com o seu advogado.

É a outra face da moeda. Como ela é indivisível temos que conviver com os dois lados.

A mente das pessoas não se prende, não está e não estará jamais aprisionada. É importante afastar o hábito da ociosidade e desenvolver aptidão para atividades profissionais e culturais. É, de fato, incompreensível que a administração penitenciária se coloque, por vezes, contra a permissão para as atividades ocupacionais que não ferem a privação da liberdade.

Não é incomum termos notícias de ocorrências de agressões e até mortes, de uso de entorpecentes, celulares, tentativas de fuga e a presença do crime organizado. Este aspecto nos traz alguma inseguranç

Nesse sentido é de se louvar no CMP a existência de uma escola de artes. Nela os alunos têm a sua saúde ocupacional e a sua autoestima elevadas na aprendizagem e no exercício de diversas atividades. Pude testemunhar as consequências positivas que são geradas com a reflexão pessoal de cada um, uma nova compreensão da vida, de outro olhar.

Ao que nos consta, esta iniciativa parece não estar aplicada em outras unidades. É, seguramente, o melhor exemplo humanista que o Complexo Médico Penal pode dar para o sistema como um todo. Que seja incentivado.

Jan/2019″

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

O (des)encontro com Têmis

Têmis gostaria de ir ao encontro de Maria, uma jovem vítima de violência doméstica, mas o Brasil foi o grande responsável pelo desencontro

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima